Você sabe o que é o Foro de São Paulo?

Composto por partidos e movimentos de esquerda da América Latina e Caribe, como o PT, o fórum desperta o medo e a desinformação.




Foro de São Paulo, composto por partidos e movimentos de esquerda da América Latina e Caribe, como o PT, o fórum desperta o medo e a desinformação. Saiba qual é a origem dessa organização, quem são seus membros e o quais seus planos para o futuro.
O que é o Foro de São Paulo?
É uma organização que junta vários partidos e movimentos sociais populares e de esquerda da América Latina e do Caribe. Ele foi fundado em 1990 pelo PT do ex-presidente Lula e pelo Partido Comunista Cubano de Fidel Castro, entre outros.
O Foro é uma organização comunista?
Não. As organizações que fazem parte do Foro são, sim, de esquerda. E também é verdade que alguns partidos comunistas são membros, mas o Foro em si não pertence a nenhuma corrente específica. Ele se autodeclara como sendo de esquerda, anti-imperialista, socialista e democrático.
O que faz o Foro de São Paulo?
É um fórum de debates que discute as alternativas à visão neoliberal da economia e da política. Esses grupos e partidos de esquerda trocam experiências e conhecimento a respeito de como construir políticas sociais. Explico melhor: no final dos anos 80, com a queda da União Soviética, parecia que a esquerda estava destinada a acabar. Alguns até sugeriam que a visão neoliberal da sociedade – baseada na utopia de que o livre mercado seria capaz de promover crescimento econômico para todos – era o “fim da história”. O Foro surgiu justamente para oferecer um contraponto a essa visão.
Ouvi dizer que o objetivo do Foro é implementar o comunismo na América Latina e que já está fazendo isso em vários lugares, como na Bolívia e na Venezuela. É verdade?
Não. Como já dissemos, o Foro de São Paulo apenas reúne seus participantes de dois em dois anos para discutir questões que sejam pertinentes aos seus membros. E em vários países há governantes de partidos integrantes do Foro sem que isso tenha significado o fim da democracia. No Chile, por exemplo, onde Michelle Bachelet, socialista, governou por um mandato para dar lugar a um presidente conservador em seguida (Sebastián Piñera, do Renovação Nacional).
Que países são governados por políticos que fazem parte do Foro?
Vários países da América Latina e do Caribe. Os principais são Brasil, Uruguai (Pepe Mujica), Argentina (Cristina Kirchner), Bolívia (Evo Morales), Chile (Michelle Bachelet), Peru (Ollanta Humala) e Equador (Rafael Correa) e outros.
É verdade que as FARC fazem parte do Foro de São Paulo?
Não. As FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, grupo guerrilheiro) tentaram participar de duas reuniões em 2004 e 2008, mas não conseguiram porque foram impedidos e não fazem parte do grupo. Em 2008 inclusive quem barrou a presença das Farc foi o PT, que ocupava a secretaria-executiva da entidade.
Dizem que o Foro era secreto até 1997. Verdade?
O Foro nunca foi secreto. Talvez ele fosse desconhecido porque a esquerda latino-americana começou a crescer no final dos anos 90, mas, pelo menos desde 1995 os jornais brasileiros sabiam da existência do grupo e noticiavam seus encontros, mesmo que fosse de maneira discreta. 
Fonte: Carta Capital

Ramonet: viagem a uma nova Bolívia

Para o viajante que volta à Bolívia depois de alguns anos de ausência, e que caminha lentamente pelas ruas estreitas de La Paz – cidade marcada por ravinas escarpadas a quase quatro mil metros de altitude – as transformações saltam aos olhos: não se veem mais pedintes, nem vendedores informais que lotavam as calçadas. As pessoas se vestem melhor, têm um ar mais saudável. E a capital tem uma aparência mais bem tratada, mais limpa, com muitos espaços verdes. Ressalta também o surgimento de novas construções. Despontaram duas dezenas de grandes imóveis e multiplicaram-se os centros comerciais; um deles tem o maior complexo de cinemas (18 salas) da América do Sul.
Mas o mais espetacular são os teleféricos urbanos, de extraordinária tecnologia futurista [1], que mantêm, acima da cidade, um balé permanente de cabines coloridas, elegantes e etéreas como bolhas de sabão. Silenciosas e não poluentes. Duas linhas estão funcionando agora, a vermelha e a amarela; uma terceira, a verde, será inaugurada nas próximas semanas, permitindo assim a criação de uma rede interligada de transporte a cabo de 11 km, a maior do mundo. Isso possibilitará a dezenas de milhares de moradores de La Paz economizar em média duas horas de viagem por dia.
 A Bolívia muda. Evo cumpre suas promessas”, afirmam cartazes nas ruas. E pode-se constatar que o país é de fato outro. Muito diferente daquele que conheci há apenas uma década, quando foi considerado “o Estado mais pobre da América Latina depois do Haiti.” Corruptos e autoritários em sua maioria, seus governos passavam os anos a implorar empréstimos aos organismos financeiros internacionais, às principais potências ocidentais ou às organizações humanitárias. Enquanto isso, as grandes mineradoras estrangeiras pilhavam o subsolo, pagando ao Estado royalties de miséria e prolongando a espoliação colonial.
Relativamente pouco povoada (cerca de dez milhões de habitantes), a Bolívia tem superfície de mais de um milhão de quilômetros quadrados (duas Franças, ou Bahia e Minas Gerais somadas). Suas entranhas transbordam de riquezas: prata (faz lembrar Potosí …), ouro, estanho, ferro, cobre, zinco, tungstênio, manganês etc. O sal de Uyuni tem as maiores reservas no mundo de potássio e lítio – considerado a energia do futuro. Mas hoje, a principal fonte de renda é constituída pelo setor de hidrocarbonetos: gás natural (a segunda maior reserva da América do Sul), e petróleo (em menor quantidade, por volta de 16 milhões de barris ao ano).
No decorrer dos últimos nove anos, após a chegada de Evo Morales ao poder, o crescimento econômico da Bolívia foi sensacional, com uma taxa média anual de 5%. Em 2013, o avanço do PIB atingiu 6,8% [2]; em 2014 e 2015, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), será igualmente superior a 5%… É o percentual mais elevado da América Latina [3]. E tudo isso com uma inflação moderada e controlada, inferior a 6%.
Assim, o nível material de vida dobrou [4]. As contas públicas, embora com importantes investimentos sociais, são igualmente controladas, a tal ponto que a balança comercial oferece resultado positivo com excedente orçamentário de 2,6% (em 2014) [5]. Embora as exportações, principalmente de hidrocarburetos e de produtos de mineração, desempenhem papel importante nessa prosperidade econômica, é a demanda interna (+5,4%) que constitui o principal motor do crescimento. Finalmente, outro sucesso sem precedentes da gestão do ministro da economia, Luis Arce: as reservas monetárias internacionais da Bolívia agora equivalem a 47% do PIB [6], colocando pela primeira vez o país em primeiro lugar na América Latina, bem à frente de Brasil, México e Argentina. Evo Morales indicou que a Bolívia pode deixar de ser um país endividado em nível estrutural para tornar-se um país credor. Ele revelou que “quatro Estados da região”, sem especificar quais, já solicitaram crédito ao governo …
Num país onde mais de metade da população é de origem indígena, Evo Morales, eleito em janeiro de 2006, é o primeiro índio a tornar-se presidente no decorrer dos últimos cinco séculos. E, depois que assumiu o poder, esse presidente diverso rejeitou o “modelo neoliberal” e substituiu-o por um novo “modelo econômico social comunitário produtivo”. A partir de maio de 2006, nacionalizou os setores estratégicos (hidrocarburetos, indústria de mineração, eletricidade, recursos ambientais) geradores de excedentes, e investiu parte desse excedente nos setores geradores de emprego: indústria, produtos manufaturados, artesanato, transporte, agricultura e pecuária, habitação, comércio etc. Consagrou a outra parte do excedente à redução da pobreza por meio de políticas sociais (educação, saúde), aumentos salariais (para funcionários e trabalhadores do setor público), estímulos à integração (os bônus Juancito Pinto [7], a pensão “dignidade” [8], os bônus Juana Azurduy [9]) e subsídios.
Os resultados da aplicação desse modelo não se refletem apenas nas cifras acima, mas também num dado bem explícito: mais de um milhão de bolivianos (10% da população, portanto) saíram da pobreza. A dívida pública, que representava 80% do PIB, diminui e mal chega a 33%. A taxa de desemprego (3,2%) é a mais baixa da América Latina, a tal ponto que milhares de imigrantes bolivianos na Espanha, Argentina e Chile começam a voltar, atraídos pelo pleno emprego e notável aumento do padrão de vida.
Além disso, Evo Morales começou a tornar verdadeiro um Estado que até o presente não era senão virtual. É claro que a vasta e torturada geografia da Bolívia (um terço de altas montanhas andinas, dois terços de planícies tropicais e da Amazônia), assim como a divisão cultural (36 nações etnolinguísticas) nunca facilitaram a integração e a unificação. Mas o que não foi feito em quase dois séculos, o presidente Morales está determinado a colocar em prática, para dar fim ao desmembramento. Isso passa, antes de tudo, pela promulgação de uma nova Constituição, aprovada por referendo, que estabelece pela primeira vez um “Estado plurinacional” e reconhece os direitos de nações diversas que coabitam o território boliviano. Em seguida, passa pelo lançamento de uma série de ambiciosas obras públicas (estradas, pontes, túneis) com o objetivo de conectar, articular, servir áreas dispersas para que seus habitantes sintam que fazem parte de um mesmo conjunto: a Bolívia. Isso nunca havia sido feito. É a razão por que o país teve tantas tentativas de divisão, separatismo e fracionamento.
Hoje, com todos esses êxitos, os bolivianos sentem-se – talvez pela primeira vez – orgulhosos de si. Estão orgulhosos de sua cultura indígena e de suas línguas nativas. Estão orgulhosos de sua moeda, que a cada dia ganha um pouco mais de valor em relação ao dólar. Estão orgulhosos de ter o mais elevado crescimento econômico e as reservas monetárias mais importantes da América Latina. Orgulhosos de suas realizações tecnológicas como a rede de teleféricos de última geração, de seu satélite de telecomunicações Tupac Katari, de sua cadeia de televisão pública Bolivia TV [10]. Essa cadeia, dirigida por Gustavo Portocarrero, deu em 12 de outubro, dia das eleições presidenciais, uma demonstração notória de sua excelência tecnológica ao conectar-se diretamente – durante 24 horas ininterruptas – com seus enviados especiais em cerca de 40 cidades do mundo (Japão, China, Rússia, Índia, Egito, Irã, Espanha etc.), onde bolivianos que vivem no exterior votaram pela primeira vez. Proeza técnica e humana que poucos canais de TV do mundo seriam capazes de conseguir.
Todas essas realizações – econômicas, sociais, tecnológicas – só explicam em parte a vitória esmagadora de Evo Morales e de seu partido (o Movimiento al Socialismo, MAS) nas eleições de 12 de outubro último [11]. Ícone da luta dos povos indígenas e autóctones de todo o mundo, graças a este novo triunfo, Evo conseguiu romper preconceitos importantes. Ele prova que a permanência no governo não causa, necessariamente, desgastes; e que, depois de nove anos no poder, é possível conseguir uma reeleição esmagadora. Prova também que, ao contrário do que afirmam os racistas e colonialistas, “os índios” sabem como governar e podem ser os melhores líderes que o país já teve. Prova que, sem corrupção, com honestidade e eficácia, o Estado poder ser um excelente administrador, e não uma calamidade sistemática, como pretendem os neoliberais. Finalmente, Evo prova que a esquerda no poder pode ser eficaz; que pode gerir políticas de integração e redistribuição de riquezas sem pôr em perigo a estabilidade da economia.
Mas essa grande vitória eleitoral explica-se também, e talvez sobretudo, por razões políticas. O presidente Evo Morales logrou vencer, ideologicamente, seus principais adversários, agrupados no seio da casta de empresários da província de Santa Cruz, principal motor econômico do país. Esse grupo conservador, que tentou tudo contra o presidente – desde o ensaio de divisão do país até o golpe de Estado –, acabou finalmente por submeter-se e render-se ao projeto presidencial, reconhecendo que o país está em plena fase de desenvolvimento.
É uma vitória considerável, que o vice-presidente Álvaro García Linera explica nestes termos: “Conseguimos integrar o leste da Bolívia e unificar o país, graças à derrota política e ideológica de um núcleo político de empresários ultraconservadores, racistas e fascistas, que conspiraram para dar um golpe de Estado e financiaram grupos armados para organizar uma divisão do território oriental. Além disso, esses nove anos têm mostrado às classes médias urbanas e aos setores populares de Santa Cruz, que estavam cautelosos, que temos melhorado suas condições de vida, que respeitamos o que foi construído em Santa Cruz e suas especificidades. Somos evidentemente um governo socialista, de esquerda, e dirigido por indígenas. Mas desejamos melhorar a vida de todos. Enfrentamos as empresas petrolíferas estrangeiras, da mesma forma que as empresas de energia elétrica, e as fizemos dar sua contribuição para depois, com esses recursos, dar poder ao país, principalmente aos mais pobres – mas sem afetar as posses das classes médias ou do setor empresarial. Esta é a razão por que foi possível um reencontro com o governo de Santa Cruz, e tão frutífero. Nós não mudamos de atitude, seguimos dizendo e fazendo as mesmas coisas que há nove anos. Eles é que mudaram de atitude diante de nós. Desde então, começa esta nova etapa do processo revolucionário boliviano, que é a da irradiação territorial e da hegemonia ideológica e política. Eles começam a compreender que não somos seus inimigos, que é do interesse deles praticar a economia sem entrar na política. Mas se, como empresários, tentarem ocupar as estruturas do Estado e quiserem combinar política e economia, eles não conseguirão. Da mesma forma, não pode ser que um militar assuma também o controle civil, político, uma vez que eles já têm o controle das armas.”
Em seu gabinete do Palacio Quemado (palácio presidencial) o ministro da Presidência, Juan Ramón Quintana, explica isso em uma frase: “Vencer e integrar”. “Não se trata – diz ele – de derrotar o adversário e abandoná-lo à sua sorte, correndo o risco de que comece a conspirar com o ressentimento do derrotado e embarque em novas tentativas de golpe. Uma vez vencido, é preciso incorporá-lo, dar-lhe oportunidade de juntar-se ao projeto nacional em que todos estão envolvidos, sob a condição de que admitam e se submetam ao fato de que a direção política, pela decisão democrática das urnas, é exercida por Evo e o MAS.”
E agora? O que fazer com uma vitória assim esmagadora? “Temos um programa [12] – afirma tranquilamente Juan Ramón Quintana – queremos erradicar a pobreza, dar acesso universal aos serviços públicos básicos, garantir uma saúde e uma educação de qualidade para todos, desenvolver a ciência, a tecnologia e a economia do conhecimento, estabelecer uma administração econômica responsável, ter uma gestão pública transparente e eficaz, diversificar nossa produção, industrializar o país, alcançar a soberania alimentar e agrícola, respeitar a mãe Terra, avançar em direção a uma maior integração latino-americana e com nosso parceiros do Sul, integrar-nos ao Mercosul e alcançar nosso objetivo histórico, fechar nossa ferida aberta: recuperar nossa soberania marítima e o acesso ao mar [13].”
Por sua vez, Evo Morales exprimiu seu desejo de ver a Bolívia tornar-se o “coração energético da América do Sul”, graças ao enorme potencial em matéria de energias renováveis (hidroelétrica, eólica, solar, geotérmica, biomassa), ao invés dos hidrocarbonetos (petróleo e gás). Isso, com o complemento da energia atômica civil produzida por uma central nuclear cuja aquisição está próxima.
A Bolívia muda. Avança. E sua metamorfose prodigiosa ainda não acabou de surpreender o mundo.
Ignácio Ramonet é jornalista, editor do Le Monde Diplomatique, edição espanhola, e presidente da rede Memória das Lutas – Medelu.

NOTAS
[1] A fabricante é a empresa austríaca Doppelmayr Garaventa.
[2] Ler Economía Plural, La Paz, abril 2014.
[3] Ler Página Siete, La Paz, 12 outubro 2014.
[4] Entre 2005 e 2013, o PIB por habitante mais que dobrou(de 1.182 dólares para 2.757 dólares). A Bolívia não é mais um “país de baixa renda” e foi declarada “país de renda média”. Ler “Bolivia, una mirada a los logros más importantes del nuevo modelo econômico” em Economía Plural, La Paz, junho 2014.
[5] A boa gestão das finanças públicas possibilitou à Bolívia tornar-se o segundo país de maior superávit orçamentário da América Latina no curso dos últimos oito anos.
[6] Em cifras absolutas, as reservas internacionais da Bolívia são de aproximadamente 16 bilhões de dólares. Em 2013, o PIB foi cerca de 31 bilhões de dólares.
[7] Uma quantia de 200 bolivianos anuais (23 euros) é dada a cada aluno do ensino público fundamental e médio que acompanhou todas as aulas regularmente. O objetivo é lutar contra a evasão escolar.
[8] Uma pensão que todos os bolivianos recebem a partir de 60 anos, mesmo aqueles que jamais contribuíram com o sistema de Previdência.
[9] Uma ajuda econômica de 1.820 bolivianos (cerca de 215 euros) é fornecida às mulheres grávidas e por cada menino ou menina de menos de dois anos com o objetivo de reduzir a taxa de mortalidade infantil e materna.
[11] Ler, de Atilio Borón, “Por que Evo Morales venceu outra vez?” Outras Palavras, 13/10/2014.
[12] “Agenda patriótica 2025: la ruta boliviana del vivir bien (Agenda patriótica 2025:o caminho boliviano do bem viver)”. Em 2025 será a festa do bicentenário da independência e da fundação da Bolívia.
[13] A Bolívia fez uma consulta à Corte internacional de justiça de Haia. Leia El libro del mar, ministério de assuntos estrangeiros, La Paz, 2014.

Você sabe o que é o bolivarianismo?


Após ser apropriado pelo ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, o termo originado do sobrenome do libertador Simón Bolívar aterrissou no debate político brasileiro. São frequentes as acusações de políticos de oposição e da mídia contra o governo federal petista. Lula e Dilma estariam "transformando o Brasil em uma Venezuela". Mas o que é o tal bolivarianismo de que tanto falam? É um palavrão? O Brasil é uma Venezuela? Bolivarismo é sinônimo de ditadura comunista? Antes de sair por aí repetindo definições equivocadas, leia as respostas abaixo:

O que é bolivarianismo?
O termo provém do nome do general venezuelano do século 19 Simón Bolívar, que liderou os movimentos de independência da Venezuela, da Colômbia, do Equador, do Peru e da Bolívia. Convencionou-se, no entanto, chamar de bolivarianos os governos de esquerda na América Latina que questionam o neoliberalismo e o Consenso de Washington (doutrina macroeconômica ditada por economistas do FMI e do Banco Mundial).

Bolivarianismo e ditadura comunista são a mesma coisa?
Não. Mesmo considerando a interpretação que Chávez deu ao termo, o que convencionou-se chamar bolivarianismo está muito longe de ser uma ditadura comunista. As realidades de países que se dizem bolivarianos, como Venezuela, Bolívia e Equador, são bem diferentes da Rússia sob o comando de Stalin ou mesmo da Romênia sob o regime de Nicolau Ceausescu. Neles, os meios de produção estavam nas mãos do Estado, não havia liberdade política ou pluralidade partidária e era inaceitável pensar diferentemente da ideologia dominante do governo. Aqueles que o faziam eram punidos ou exilados, como os que eram enviados para o gulag soviético, campo de trabalho forçado símbolo da repressão ditatorial da Rússia. Na Venezuela, por exemplo, nada disso acontece. A oposição tem figuras conhecidas como Henrique Capriles, Leopoldo López e Maria Corina Machado. Cenário semelhante ocorre na Bolívia, no Equador e também no Brasil, onde há total liberdade de expressão, de imprensa e de oposição ao governo.

Foi Chávez quem inventou o bolivarianismo?
Não. O que o então presidente venezuelano Hugo Chávez fez foi declarar seu país uma "república bolivariana". A mesma retórica foi utilizada pelos presidentes Rafael Correa (Equador) e Evo Morales (Bolívia). A associação entre bolivarianismo e socialismo, no entanto, é questionável segundo a própria biógrafa de Bolívar, a jornalista peruana Marie Arana, editora literária do jornal americano The Washington Post. De acordo com ela, esse “bolivarianismo” instituído por Chávez na Venezuela foi inspirado nos ideais de Bolívar, tais como o combate a injustiças e a defesa do esclarecimento popular e da liberdade. Mas, segundo a biógrafa, a apropriação de seu nome por Chávez e outros mandatários latinos é inapropriada e errada historicamente: “Ele não era socialista de forma alguma. Em certos momentos, foi um ditador de direita”.

O que se tornou o bolivarianismo na Venezuela?
Quando assumiu a Presidência da República em 1999, Chávez declarou-se seguidor das ideias de Bolívar. Em seu governo uma assembleia alterou a Constituição da Venezuela de 1961 para a chamada Constituição Bolivariana de 1999. O nome do país também mudou: era Estado Venezuelano e tornou-se República Bolivariana da Venezuela. Foram criadas ainda instituições de ensino com o adjetivo, como as escolas bolivarianas e a Universidade Bolivariana da Venezuela.

Mas esse regime que Chávez chamava de bolivarianismo era comunista?
Não, apesar de o ex-presidente venezuelano ter usado o termo "Revolução Bolivariana" para referir-se ao seu governo. A ideia era promover mudanças políticas, econômicas e sociais como a universalização à educação e à saúde, além de medidas de caráter econômico, como a nacionalização de indústrias ou serviços. Chávez falava em "socialismo do século XXI", mas o governo venezuelano continua permitindo a entrada de capital estrangeiro no País, assim como a parceria com empresas privadas nacionais e estrangeiras. Empreiteiras brasileiras, chinesas e bielo-russas, por exemplo, constroem moradias para o maior programa habitacional do país, o Gran Misión Vivienda Venezuela, inspirado no brasileiro Minha Casa Minha Vida.

O Brasil "virou uma Venezuela"?
Esta afirmação não faz sentido. O Brasil é parceiro econômico e estratégico da Venezuela, mas as diretrizes do governo Dilma e do governo de Nicolás Maduro são bastante distintas, tanto na retórica quanto na prática.

Os conselhos populares são bolivarianos?
Não, e aqui o engano vai além do uso equivocado do adjetivo. Parte da Política Nacional de Participação Social, os conselhos populares seriam a base de um complexo sistema de participação social, com a finalidade de aprofundar o debate sobre políticas públicas com representantes da sociedade civil. Ao contrário do alegado por opositores, os conselhos de participação popular não são uma afronta à democracia representativa. Conforme observou o ex-ministro e fundador do PSDB Luiz Carlos Bresser-Pereira, os conselhos estabeleceriam “um mecanismo mais formal por meio do qual o governo poderá ouvir melhor as demandas e propostas [da população]”.
Fonte: Carta Capital

A tática Black Bloc e as histórias não contadas na grande mídia

Por Cíntia Alves, publicado originalmente no GGN
“Muitos falaram sobre eles, mas com eles, poucos.” É assim que a espanhola Esther Solano Gallego, uma das autoras do livro “Mascarados – A verdadeira História dos adeptos da tática Black Bloc” falou ao GGN sobre o bloco negro que tomou as ruas de diversas cidades do País a partir de junho de 2013, com um olhar especial sobre o movimento em São Paulo.
Foi no Estado governado por Geraldo Alckmin que a professora da Unifesp foi utilizada, inúmeras vezes, por jornalistas da grande mídia que queriam chegar a qualquer um dos mascarados, ou apenas reportar o clima das manifestações que renderam picos de audiência nos programas de TV.
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Esse ruído na mensagem que os adeptos da tática Black Bloc pretendiam enviar à população despertou em Esther e nos jornalistas Bruno Paes Manso (Estadão) e Willian Novaes (editora Geração) o interesse em recontar a história dessa massa negra mal compreendida (ou, no mínimo, mal explorada). De pouco mais de um ano de contato direto com os mascarados – pois a pesquisa se estendeu até os protestos na Copa do Mundo – nasceu o livro que será lançado no dia 4 de novembro, na capital paulista.Muitos dos profissionais da imprensa tradicional, segundo contam os autores, criaram um “cordão imaginário de isolamento”, uma distância “inexplicável” dos verdadeiros atores dos protestos violentos contra o Estado, o sistema financeiro atual e as mazelas da sociedade.
Dividido em quatro partes, “Mascarados” insere e contextualiza a tática nas manifestações que eclodiram em junho de 2013. Na obra, Esther aprofunda-se na pesquisa sobre os adeptos, Bruno Paes explica como foi a cobertura na grande mídia e Willian Novaes traça sete perfis que representam os cerca de 70 black blocs de São Paulo, além de entrevistar o coronel Reinaldo Rossi, que acabou sendo agredido por um destacamento do bloco negro.
Na visão de Novaes, chama atenção o fato de a grande imprensa, principal interlocutora entre as massas e os fatos do cotidiano, não ter mergulhado na realidade dos mascarados. Tampouco as autoridades policiais ou o Estado conseguiram explicar quem eram esses manifestantes, e o que queriam dizer, pois o diálogo foi negligenciado.
“O que eu senti foi um receio por parte da mídia de uma coisa que não existia. E o livro vem à tona justamente para isso: mostrar quem são esses rapazes e moças que usaram a tática Black Bloc, pois isso não passou na TV”, comentou o jornalista.
Por trás das máscaras
E quem eram as pessoas dispostas a entrar em confronto direto com a polícia para defender os manifestantes pacíficos, ou que quebravam vidraças de instituições financeiras e até patrimônios públicos?
Segundo Willian Novaes, “eram desde garotos com 14 anos, até adultos com, no máximo, 30, 33 anos. Mas a maioria está concentrada entre 18 e 22 anos. São rapazes do PT ou do PSOL? Turma do PSDB tentando destituir o adversário do governo [federal]? Não existiu nada disso! Uma parte dos adeptos da tática Black Bloc era de anarquistas; a outra, de jovens cansados de conviver com a violência policial e com o preconceito contra pobre e negro. No livro, tem desde morador dos Jardins até da Brasilândia. Tem gente do ABC, do Centro da cidade, de todo lugar.”
Eles se conheceram nas ruas, nas primeiras manifestações, quando apareceram alguns usando a tática que surgiu na Alemanha, há décadas, em meio a protestos políticos. “A maioria ficou encantada. Tinha o problema da violência policial, que eles queriam revidar. E outra coisa perceptível era a paixão comum pela violência. A violência atraiu esses jovens”, disse Novaes.
Para Esther, eles queriam chamar atenção para uma discussão política. “Eles diziam muito que ‘vândalos é o Estado, criminoso é o Estado’. Conseguiram chamar atenção até da mídia internacional. Mas a principal crítica deles mesmos é que não conseguiram levar a verdadeira mensagem que eles queriam. Por exemplo: quebrar agência de banco é um modo de dizer que o banco é um verdadeiro criminoso, que escraviza a população. Mas será que a população entende essa mensagem?”
“Parece que não existiu uma vontade de descobrir quem eram aqueles moleques”, ponderou Novaes. “Nem a imprensa e nem a Polícia chegaram a essa identidade. A Polícia Civil desenvolveu um inquérito, mas tudo indica que a corporação não mapeou corretamente os praticantes da tática Black Bloc.” A corporação acha que se trata, em parte, de jovens incentivados por partidos de esquerda. “Não deveria ser tão difícil mapear porque não eram tantas pessoas assim. Foram poucos garotos. Se alguém tem culpa pela dimensão dessa massa, é a imprensa, que acabou dando espaço demais ao assunto”, acrescentou.
Retorno às ruas
Depois do insucesso na comunicação com a sociedade e do prolema criado com a polícia, será que os mascarados retornam às ruas?
“Uma parte diz que foi usada pelos governantes que queriam disputar entre si. Uns acham que as manifestações tiveram sucesso. Mas no final, a maioria está cansada. Viram que a tática não deu em nada. Por que o que foi que nós vimos esse ano? Nós elegemos um Congresso mais conservador, reelegemos a presidente, Alckmin está reeleito. Por essa avaliação e por outros problemas, como a prisão de dois garotos que não tiveram absolutamente nada com os black blocs, acho não sei se eles voltam à prática”, avaliou Novaes.
Para Esther, há dúvidas. “Esses jovens são engajados, eles se transformaram, deixaram as camisetas negras de black blocs mas estão entrando para outros grupos, como o da campanha do voto nulo. Mas a tática pode virar uma moda, de certa forma. Por exemplo, estamos em São Paulo com uma crise de água. Quem sabe a gente volte a assistir manifestações contra isso, e a tática pode voltar a ser aplicada. Não dá para saber se eles voltam não, porque não é um grupo fechado. É uma tática que pode ser aplicada por quem achar o momento propício.”

Energia limpa: países emergentes investem duas vezes mais que países desenvolvidos

Por Anastasia Pantsios, em EcoWatch
Uma narrativa popular entre os “negadores do clima” e detratores da energia verde é que o combate às emissões de carbono e às mudanças climáticas, ao promover as fontes de energias sustentáveis, é um fardo para os países mais pobres e prejudica suas populações. Porém, um novo relatório, chamado Climatescope 2014: Mapping the Global Frontier for Clean Energy Investment, contradiz tal argumentação, mostrando que alguns dos países mais pobres do mundo já são líderes em energias renováveis.
De acordo com o relatório, que avalia a habilidade de 55 países em atrair investimentos em energia limpa baseada em políticas atuais, as nações emergentes estão superando, e muito, as economias estruturadas quando o assunto é energia verde. Descobriu-se também que os mercados emergentes tiveram um crescimento de 143% em sua capacidade de energia limpa, enquanto os países com economias maiores e mais robustas contabilizam apenas 84%.
“Energia limpa é uma opção de baixo custo para muitos desses países”, disse Ethan Zindler, analista para a Bloomberg New Energy Finance. “As tecnologias já possuem um custo-benefício agora. Não no futuro, mas agora”, completa.
“Por anos, foi amplamente aceito que apenas os países mais ricos do mundo teriam meios de se beneficiar com as fontes energéticas de emissão zero de carbono”, lê-se na introdução do relatório. “Nações emergentes, presumia-se, poderiam pagar apenas por geração de energia baseada em fósseis. Essa crença norteou diversas decisões políticas e de investimento. Ela até mesmo moldou as dinâmicas dos debates internacionais sobre o clima, mas tecnologias verdes se expandiram e tecnologias para energia limpa já estão ao alcance de tais países – que são o lar de alguns dos mais extraordinários recursos naturais como vento, sol, geotermal, biomassa e hidroelétricas”.
O texto continua apontando que a dependência de combustíveis fósseis, na realidade, significou que alguns dos países mais pobres têm os preços mais caros de eletricidade.
“Nos países menos desenvolvidos, onde centenas de milhões de pessoas não têm acesso à eletricidade, à distribuição de energia limpa como fonte elétrica, é geralmente a escolha óbvia, ao invés do tradicional método de redes de transmissão ou geradores locais a diesel”, afirma o relatório, salientando ainda países como a Jamaica, onde as energias eólicas e solares, podem contabilizar metade do preço do que seria com combustíveis fósseis.
Esse é o terceiro ano do projeto, que anteriormente examinou exaustivamente os países da América Latina e do Caribe. Nesse ano, o relatório avalia países na África Subsaariana e na Ásia, além de 10 estados indianos e 15 províncias chinesas.

A viabilidade comprovada de Outra Agricultura

Por Juliana Dias
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) elegeu 2014 como o Ano Internacional da Agricultura Familiar. Sua finalidade é contribuir para reposicionar esse modelo de produção no centro das políticas públicas agrícolas, ambientais e sociais das agendas nacionais. Também se propõe a identificar lacunas e oportunidades para “promover uma mudança mais equitativa e equilibrada”. No dia 16 de outubro é comemorado o Dia Mundial da Alimentação, promovido pela mesma entidade, com o tema “Alimentar o mundo, cuidar do planeta”. Essas duas datas comemorativas são oportunas para colocar em pauta a relação intrínseca entre o modo de produção agrícola e a Segurança e Soberania Alimentar.
A agricultura moderna posiciona-se no centro do cenário da crise ecológica mundial, num duplo papel de algoz e vítima . De acordo com Paulo Petersen, coordenador-executivo da AS-PTA, organização que atua no fortalecimento da agricultura familiar e agroecologia há 30 anos, essa dualidade explica-se pela fato de que a monocultura industrializada e os mercados agroalimentares estão entre as principais atividades geradoras da degradação ambiental e das mudanças climáticas mas, ao mesmo tempo, são vulneráveis aos efeitos do uso indiscriminado dos recursos naturais.
A ambiguidade do sistema industrial de produção também pode ser observada nos resultados sociais e econômicos da crise em curso. O relatório O Estado de Insegurança Alimentar no Mundo (SOFI, sigla em inglês), divulgado pela FAO em setembro, informa que existem 805 milhões de pessoas com fome no planeta. Petersen salienta que o número de famintos e subnutridos iguala-se ao de pessoas sujeitas à epidemia de sobrepeso e obesidade – que muito frequentemente acompanha a subnutrição. A insegurança alimentar é o elo mais evidente na articulação entre a crise econômico-social e a crise ecológico-climática.
Essa análise do coordenador da AS-PTA soma-se aos dados do sociólogo Jean Ziegler ao informar que a produção alimentar atual já é suficiente para alimentar cerca de 20 bilhões de pessoas num planeta com sete bilhões de habitantes. Para Petersen, o paradoxo da fome e da abundância indica “a existência de uma única crise, de caráter sistêmico complexo e multidimensional”.
A produção agrícola local, de base familiar, é o elo vital na conexão campo-cidade devido à capacidade de ampliar o acesso ao alimento de qualidade e em quantidade; preservar a cultura; e promover o desenvolvimento ambiental, social e econômico. O documento SOFI demonstra qual modelo tem sido mais eficiente no enfrentamento dos desafios contemporâneos. O Brasil é apontado como referência no combate à fome e se destaca a importante contribuição da Agricultura Familiar para essa realidade. O diretor do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos (PMA), Daniel Balaban, ressalta que 70% do consumo interno do país é proveniente dos pequenos agricultores. Ele afirma que esses trabalhadores largavam suas terras em busca de emprego na cidade. Hoje, por meio de políticas de incentivo, permanecem no campo, recebem capacitação técnica e têm garantia de venda dos seus produtos.
Francisco Caldeira, de 56 anos, é agricultor familiar em Vargem Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro e vem participando do Projeto Alimentos Saudáveis nos Mercados Locais, realizado pela AS-PTA, com o patrocínio da Petrobras por meio do Programa Petrobras Socioambiental, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Francisco acompanha de perto a efetivação dessas políticas, entre elas, a Lei Federal de Alimentação Escolar (11.497/2009) para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que abriu novos caminhos ao determinar que 30% da compra para as refeições escolares seja adquirida da agricultura familiar local. Existem ainda muitos desafios para efetivar essa legislação num município como Rio de Janeiro. Entretanto, após cinco anos de aprovação da referida lei, os esforços para ampliar a oferta de alimentos locais e saudáveis na escola – uma articulação da Rede Carioca de Agroecologia (RCAU), composta por mais de 30 entidades e grupos – são uma das principais motivações dos agricultores da Zona Oeste da cidade que já acessam essa política.
Francisco foi um dos primeiros agricultores participantes dessa Rede a obter a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), espécie de carteira de identidade do agricultor familiar que permite efetuar a venda para o governo, e garante outros direitos. Além de incrementar a renda, comercializar para uma escola do próprio bairro, estimula um circuito mais curto de comercialização e qualifica o agricultor como um agente de educação importante para abordar as questões alimentares, do refeitório à sala de aula. Com isso, amplia as possibilidades da função social da terra. Não se trata apenas de vender alimentos, mas de estabelecer uma relação em que os alunos têm a oportunidade de conhecer a origem de seus alimentos e ter o direito de escolha. Francisco tem recebido estudantes em seu sítio para conhecer de perto a agroecologia; aprender sobre plantas medicinais e ter a oportunidade de participar do plantio e da colheita. Aprendizados que criam laços entre agricultor e consumidor, os cidadãos que plantam e os que dependem desse alimento.
Um “caminhar lentamente”
Compreender a Agricultura Familiar é “um caminhar lentamente”. Foi assim que Francisco, hoje presidente do Consea-Rio (Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do município) definiu sua trajetória, enquanto subíamos o Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB), em direção ao seu sítio. Durante a caminhada, desviando de obstáculos, apreciando paisagem e os pequenos frutos espalhados pela trilha, (como cambucá, camboatá e grumixama), acenando para a vizinhança, dando passagem a cavalos e motos e identificando os frutos mais apreciados pelos pássaros da região, ouvimos sua experiência e vivenciamos, em parte, a intimidade que tem com a floresta onde vive.
De família de agricultores em Santa Maria Madalena, município do Estado do Rio, e casado com Angélica Caldeira há 34 anos, cuja família está há cinco gerações cultivando alimentos no Maciço da Pedra Branca, ele diz que já nasceu agricultor. Mas a dureza da caminhada o fez desistir da lavoura. “Não conseguia trabalhar, não tinha assistência técnica, a terra não correspondia devido aos usos indevidos do solo. Era uma atividade muito rudimentar. Não tinha reconhecimento”, lembra. Saiu, então, em busca de melhores oportunidades na cidade, mas continuou insatisfeito. Trabalhou por oito anos em feiras livres na Zona Oeste, entretanto, permanecia inquieto. “Quando você tem um umbigo enterrado nessa história, às vezes, você sai dela, mas ela não sai de você”, concluiu o seu desconforto em desistir de seu ofício.
O retorno ao campo foi em 2008, por meio de resgate de seus saberes e sua participação em momentos de formação sobre plantas medicinais, oferecidos pelo Profito – desenvolvido pela Plataforma Agroecológica de Fitomedicamentos (PAF/ Farmanguinhos/ Fiocruz). Durante dois anos, os agricultores locais – distanciados pela árdua rotina – foram se achegando, se inteirando sobre seus direitos e, assim, reuniram forças para continuar semeando. “Tinha gente que há 10 anos não se via, vivendo na mesma região. A história da discussão política começou a fazer sentido. Assim, como conhecer outras realidades que não eram diferentes das nossas, foram se somando às experiências de agricultura aqui e ali. Voltei a cuidar do sítio e fui caminhando mais para o lado da discussão política”, comenta.
O debate iniciado durante as oficinas do Profito deu origem à Associação de Agricultores Orgânicos de Vargem Grande (Agrovargem), com a proposta de contribuir com a formação cidadã dos agricultores, que conta com mais de 20 participantes, entre associados e entidades colaboradoras. Hoje, Francisco divide seu tempo entre o Consea, o sítio e a Feira Agroecológica da Freguesia aos sábados. Futuramente, pretende desenvolver produtos aromáticos e terapêuticos com as ervas medicinais que cultiva.
O relato de Francisco se alinha com as ideias de Jan Douwe van der Ploeg professor de sociologia rural na Universidade de Wageningen, na Holanda, e na Universidade Agrícola da China. Essas novas estratégias, que buscam fortalecer o estabelecimento familiar no campo, são definidas como formas de recampezinização. Ou seja, o emprego de princípios agroecológicos, a participação em novas atividades econômicas ou com a geração de novos produtos e a prestação de serviços em novos mercados socialmente construídos. Petersen esclarece que a recampezinização do mundo rural cria condições objetivas para desenvolver as qualidades da Agricultura Familiar, ao colocar em prática e aprimorar continuamente, – a tal caminhada do Francisco – o modo camponês de produção de vida, inscrito nas memórias bioculturais de suas comunidades. Em sua avaliação, trata-se de um projeto de cunho social, cultural, econômico, ambiental e político, com dimensões quantitativas e qualitativas.
Que modelo é esse?
No Consea, Francisco comemora o fato de ter levado as questões da Agricultura Familiar Agroecológica para a pauta. Em sua opinião, o desafio é contribuir para elaboração de políticas públicas que contemplem o modo de produção local como fundamental para combater a insegurança alimentar. “Temos péssimos hábitos alimentares, com o pensamento de que tudo é produzido na gôndola do supermercado. Tudo vem das caixinhas. Até as sementes tradicionais estão sendo substituídas pelas transgênicas. Precisamos descontruir esse modelo de produção agrícola que não respeita o meio ambiente e as pessoas. É um modelo que produz commodities para exportar. Temos que descontruir esse modelo que é bom para alguns e que tem empobrecido o agricultor, que é aquele que produz comida”, declara.
E que modelo é esse? Jean Ziegler informa que esse modelo agrícola está concentrado em apenas dez corporações – entre as quais Aventis, Monsanto, Pioneer e Syngenta – que controlam um terço do mercado global de sementes, estimado em 23 bilhões de dólares por ano; e 80% do mercado de pesticidas, em torno de 28 bilhões de dólares. Dez outras empresas, entre as quais a Cargill, controlam 57% das vendas dos 30 maiores varejistas do mundo e representam 37% das receitas das 100 maiores fabricantes de produtos alimentícios e de bebidas (p. 152). É um grupo reduzido que controla a produção, o processamento e a comercialização de bens no mercado e hoje detém a maior parte do aparato produtivo vinculado à alimentação, que inclui terra, maquinário, produtos químicos, sementes, conhecimento científico. Também dirigem a pesquisa e as novas aplicações tecnológicas (Contreras, 2011, p. 344).
A Agricultura Familiar é um desses fenômenos que as sociedades ocidentais têm cada vez mais dificuldade de compreender, afirma o professor Van der Ploeg. Isso porque se contrapõe à lógica industrial, mas ao mesmo tempo emerge como algo atrativo e sedutor. Ele considera esse modo produtivo como uma forma de vida, que não é somente o lugar onde a família é proprietária da terra e o trabalho é realizado pelos seus membros. O sociólogo define dez qualidades da Agricultura Familiar que nem sempre estão presentes ao mesmo tempo em todas as situações, mas indicam como é rica e diversa essa realidade que promove igualdade e justiça.
Quando a agricultura faz sentido
Francisco conta que quando passou a conhecer a Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede CAU), a Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ) e a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), compreendeu o sentido de sua lavoura. “Eu já praticava agroecologia e não sabia”, conta. No Parque da Pedra Branca, as mais de 150 famílias de agricultores são responsáveis por preservar a floresta, mantendo frutas e animais nativos da Mata Atlântica, num manejo sustentável, sem uso de agrotóxicos e com cultivos diversos. “As ideias fizeram sentido ao conhecer outras referências agroecológicas. Passamos a pensar o sistema agroflorestal como viável economicamente sendo de preservação”, destaca.
A história de Francisco se soma a muitas outras de agricultores que resistem às dificuldades dessa caminhada, que não é solitária nem sem sentido. Essa teia de relacionamentos que encontra novos caminhos em meio aos espinhos é explicada pelo sociólogo espanhol Manuel Castells como uma nova utopia no cerne da cultura da solidariedade em rede: a utopia da autonomia do sujeito em relação às instituições da sociedade. Segundo ele, a mudança só pode ocorrer fora do sistema, mediante a transformação das relações de poder, que começa na mente das pessoas e se desenvolve em forma de redes construídas pelos projetos dos novos atores que constituem a si mesmos como sujeitos da nova história do processo (2012, p.166).
A questão agrária se mundializou
A Agricultura Familiar liga o cidadão ao seu alimento local, sua origem, identidade e memória. Exercer um novo olhar sobre essa atividade é essencial para o desenvolvimento da cidade, com sua complexidade e multidimensionalidade. Há a necessidade de preservar os recursos hídricos para prover água de boa qualidade; proteger a fauna e a flora, servindo como atrativos para educação ambiental e o lazer. Francisco considera que investir no turismo rural é fundamental para mobilizar a população quanto à importância desse modo de produção agrícola.
O geógrafo Porto-Gonçalves (2006) destaca que o mais interessante de todo esse debate é que a questão agrária/agrícola se urbanizou. A relação cidade-campo é que está em questão. Por isso, nota-se a crescente importância das lutas camponesas, indígenas e de tantas populações que reivindicam o direito ao território, à sua cultura, aos direitos coletivos e comunitários sobre o conhecimento acerca de cultivares, que hoje se unificam diante da ameaça de ter sua biotecnologia ancestral sendo poluída geneticamente por grandes corporações, que antes de tudo visam seus próprios interesses e não os da humanidade.
Essas populações, vistas por muitos como atrasadas e condenadas à extinção, têm hoje importantes aliados na cidade. A Agricultura Familiar está tentando descobrir novas alternativas para situações difíceis. Por isso, afirma o professor Van der Ploeg, cada passo, não importa o quão pequeno, será sempre útil. Daí a importância de fortalecer as organizações civis e movimentos rurais, e compartilhar as experiências bem sucedidas, como é o caso da história do Francisco e seu engajamento às redes (Agrovargem, Rede CAU, Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro/AARJ e Consea). São passos de uma caminhada que inspira, lentamente. Afinal, estamos falando de comida na mesa não só para hoje, mas para as próximas gerações.
Esta matéria foi publicada originalmente no site da AS-PTA (http://aspta.org.br/)

Por que legalizar o aborto?

No lugar de defender a saúde das mulheres, grupos religiosos impõem ao pais, sob a aquiescência do governo, aberrações como o Estatuto do Nascituro

por Ana Maria Costa 

O dia 28 de setembro é marcado pelos movimentos sociais latino-americanos como data de luta pela descriminalização do aborto. Por que legalizar o aborto? Para consolidar o Estado laico, aperfeiçoar a democracia e promover os direitos sexuais e reprodutivos e a saúde das mulheres.
Ao contrario do Uruguai, que optou pela vida e os direitos das mulheres legalizando o aborto, o Brasil estancou o debate sobre o tema no Parlamento e no governo, barrando direitos essenciais para a democracia.

Na vida real, as mulheres brasileiras que engravidam contra a vontade, planos ou desejos, prosseguem interrompendo gestações de forma clandestina e insegura, morrendo ou adquirindo sequelas que na maioria das vezes impedem os futuros planos reprodutivos.
Sempre é pertinente lembrar que todas as mulheres, de todas as idades, classes sociais, etnias e religiões abortam, mas a ocorrência de problemas de saúde relacionados ao aborto clandestino é bem maior para as mulheres pobres e negras que, nestas ocasiões, são as que de fato se submetem a atendimentos e condições mais precárias e arriscadas.
A sociedade brasileira deve encarar a legalização do aborto por diversas razões. Trata-se de um reconhecido problema de saúde pública cujas evidências, ainda que subdimensionadas, têm sido amplamente demonstradas e discutidas.
A ilegalidade do aborto compromete os direitos inerentes à democracia e, por isso, é premente o seu aperfeiçoamento articulado à laicidade do Estado, garantindo às mulheres mais direitos e mais cidadania.
Por último, é inconcebível que o país que hoje avança rumo ao grupo de nações mais poderosas do planeta mantenha-se alienado no reconhecimento do direito legal à interrupção da gravidez, acuado por grupos religiosos, recusando a analisar e aprovar mudanças na legislação sobre o aborto que atende aos interesses coletivos.
O conceito de laicidade deve ser entendido como um dispositivo democrático que garante a liberdade religiosa na sua ampla diversidade e, ao mesmo tempo, garante a independência das decisões do Estado relacionadas aos interesses públicos. Em outra perspectiva, no Brasil a laicidade é afirmativa no marco constitucional ao expressar e conferir garantias à liberdade religiosa aos cidadãos, o que requer a neutralidade do Estado.
Entretanto, a prática da laicidade não tem sido observada e os poderes públicos estão contaminados com referências, signos e valores religiosos, mais especificamente os cristãos católicos. A maioria das repartições públicas, hospitais e outros serviços têm crucifixo na parede ou outras imagens católicas. Há alguns anos, o fato do plenário do Supremo Tribunal Federal dispor de um grande crucifixo gerou polêmica por oportunos questionamentos de feministas e de defensores da laicidade.
A mensagem do símbolo religioso presente nos espaços públicos impõe o falso pressuposto de que a religião é anterior à própria democracia quando, de fato, a religião deveria estar submetida ao pacto democrático.
O direito constitucional à liberdade religiosa garante que os crentes tenham qualquer religião e que os não-crentes não tenham religião. Entretanto, o Estado tem o dever de contestar, pelo bem comum e pela preservação dos interesses coletivos, a imposição de dogmas religiosos.
Às religiões e às igrejas é dado criar suas próprias verdades que nem sempre estão baseadas em constatações objetivas e cientificas e, nem sempre são capazes de permitir a liberdade dos que não agem ou pensam de forma semelhante aos seus preceitos. Já ao Estado não é permitido atuar ou decidir sem fundamentação cientifica ou baseado em argumentos que  não possam ser comprovados. Nem decidir com base em preceitos e valores religiosos de grupos sociais, contrariando os interesses do conjunto da população.
A inversão do lugar da religião emprenha os poderes e as instituições, cujas consequências se manifestam na vida social. Um bom exemplo desta inversão é a objeção de consciência dos profissionais de saúde no atendimento ao aborto, mesmo nos casos legalizados ou permitidos pela lei.
Tem sido assim nos serviços de saúde que, mesmo incorporando objetivos quanto ao cuidado seguro das mulheres em situação de abortamento, os profissionais alegam “objeção de consciência” e negam o atendimento, subtraindo o direito à saúde e à preservação da vida das mulheres. Trata-se, em última instancia, de uma imposição de poder do profissional e de seus valores morais às mulheres. E o fazem amparado, geralmente, pelos respectivos códigos de ética profissional.
Como advogar pela laicidade do Estado quando o país incentiva o ensino da religião católica na escola pública, em obediência a acordos entre governos nacionais e o Vaticano? Na saúde, é expressiva a presença das organizações sociais religiosas na assistência hospitalar, que contam com apoio financeiro e subsídios governamentais. Será que estas instituições atendem de forma correta, pronta e segura a mulher que busca atendimento nas situações de abortamento, mesmo nos casos permitidos pela Lei?
Nos últimos anos a situação do aborto no Brasil vem sendo esclarecida pelos diversos estudos realizados. Já não sobram duvidas de que o aborto é importante causa da mortalidade materna. Mesmo que a ampla comercialização seja lamentavelmente proibida pela Anvisa, o uso do Cytotec (misoprostol) adquirido pelas mulheres clandestinamente reduziu de modo significativo as complicações por aborto inseguro. Mas nem sempre o processo de abortamento por uso do Cytotec prescinde da assistência médica e, nesses casos, quando as mulheres buscam os serviços de saúde, acabam vitimadas por censuras, ameaças ou maus tratos dos próprios profissionais de saúde.
Os estudos de itinerários de mulheres que abortam mostram que quanto mais pobres, mais tempo e mais difícil é para elas o acesso a um atendimento em serviço de saúde. Por isso morrem ou adquirem doenças em decorrência do abortamento desassistido.
Aborto é de fato um problema complexo de saúde pública e a sua legalização é uma necessidade.  O sofrimento das mulheres e das famílias que vivenciam o abandono e a ausência do Estado quando precisam ou desejam abortar deve ser dimensionado por todos os atores públicos, se é que ocupam esta posição para defender os interesses públicos.
No lugar de se comprometer com a cidadania e a saúde das mulheres brasileiras, grupos religiosos impõem ao pais, sob a aquiescência pacífica do governo, aberrações como o Estatuto do Nascituro, bolsa-estupro e outras propostas de igual teor de violência contra as mulheres. Se estes atores que atuam no governo e no Congresso Nacional tivessem a sensibilidade, humanizada e solidária, de perceber, sentir e compreender a situação de abandono, o desespero e a dor das mulheres quando se encontram diante de uma gravidez indesejada, teriam a chance de colocar seus valores religiosos na estrita esfera do pessoal e do privado. Mas para isso é imprescindível que se aproximem da condição humana. As decisões destinadas ao conjunto da sociedade devem ser pautadas pelo respeito ao outro e pela solidariedade humana. Assim o país avançaria para promover, não apenas a laicidade e a democracia mas, especialmente, os direitos, a autonomia , a cidadania e a saúde das mulheres.

*Ana Maria Costa é médica, feminista e presidenta do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes).
Fonte: Carta Capital