E se reduzirmos a jornada trabalhista para 6 horas?

O debate não é novo, mas foram os suecos que decidiram provar sua eficácia: Gotemburgo (a segunda cidade em importância da Suécia) fará um experimento para constatar o sucesso ou o fracasso da redução da jornada trabalhista para 6 horas diárias, segundo declarou Mats Pilhem, conselheiro da prefeitura e pertencente ao Partido da Esquerda, ao jornal sueco Local.
A proposta do ensaio é singela: a metade dos funcionários da prefeitura manterão sua jornada habitual de quarenta horas semanais enquanto a outra metade desenvolverão uma jornada diária de 6 horas. Todos os trabalhadores ganharão o mesmo salário (é provável que os do segundo grupo estejam esfregando as mãos neste momento pensando no tamanho de sua sorte). Dentro de um ano serão avaliados os resultados do estudo para decidir que tipo de horário é mais benéfico para a sociedade de modo geral. “Esperamos que os trabalhadores de nosso modelo tenham menos dias de baixa por doença e se sintam melhor física e mentalmente após ter jornadas trabalhistas mais curtas”, explicou Pilhem.
A prova da redução da carga horária da jornada trabalhista obteve mais vezes resultados irregulares. Pilhem em suas declarações faz alusão a uma fábrica automobilística da própria cidade que obteve conclusões positivas. Seus opositores, no entanto, lembram o caso da cidade de Kiruna, que depois de dezesseis anos com a jornada reduzida decidiu voltar à jornada original por motivos econômicos e de saúde.
Seja como for, o que evidencia a decisão das autoridades suecas é a preocupação europeia com a duração das jornadas trabalhistas, que causam problemas que vão desde a conciliação trabalhista e familiar até à produtividade e eficiência das empresas. Há apenas algumas semanas, a França anunciou que engenheiros e consultores eram obrigados a desligar seus celulares e dispositivos eletrônicos corporativos durante 11 horas por dia para tentar acabar assim com as jornadas trabalhistas intermináveis. Isto é, desligar o computador e o celular do trabalho e esquecer deles até a manhã seguinte, uma ação que para muitos e muitas é inimaginável nos dias de hoje.
Na Espanha, o problema é quase maior devido aos horários que, por si só, já são estendidos, e à cultura do “presentismo” trabalhista que impera na sociedade há alguns anos e é agravada por fatores como a crise. No entanto, alguns setores começaram a criar iniciativas para que os horários de trabalho sejam moldados de modo que haja uma melhoria na vida social e familiar das pessoas. É o caso, por exemplo, da Associação para a Racionalização dos Horários Espanhóis (ARHOE) cujo manifesto defende por “uma profunda modificação dos horários na Espanha, que nos ajude a ser mais felizes, a ter mais qualidade de vida e a ser mais produtivos e competitivos.”
Um dos objetivos do manifesto é favorecer a igualdade entre o homem e a mulher, já que as jornadas trabalhistas que são maratonas afetam especialmente às mulheres. De fato, o partido político sueco Iniciativa Feminista, é um dos principais defensores do experimento da redução das horas de trabalho já que fará a vida trabalhista bem mais acessível às mulheres com filhos. Até o momento, as medidas que estavam sendo tomadas pareciam encaminhadas a adaptar a vida pessoal e familiar com o trabalho (com a extensão dos horários dos colégios, por exemplo) mas parece que as coisas começam a mudar, ao menos no resto da Europa. Do resultado do experimento de Gotemburgo pode ser que possam extrair os roteiros para avançar na direção adequada para a verdadeira conciliação.
Fonte: El País

Dilemas da mídia na democracia


A Presidente Dilma Rousseff costuma dizer que “prefere a imprensa barulhenta que calada”. Só que esse dilema se colocava na ditadura, quando a imprensa podia ser calada pela ditadura e era preferível que, qualquer que fosse sua orientação, permanecesse livre para expressá-la.

Na democracia as opções são outras. Ninguem quer calar a imprensa. Essa é a versão que ela busca dar das propostas de democratização dos meios de comunicação. Estas, ao contrário, não querem que ninguém deixe de falar, mas que muito mais gente, oxalá todos, possam se expressar.

O dilema, na democracia, não é, então, entre uma imprensa calada ou essa que temos. Uma imprensa monopolizada por algumas famílias, que define o que diz, como, quando, que pretende ser o partido de oposição, que distorce e/ou esconde a verdade. Uma imprensa financiada pelas agências de publicidade e, através destas, pelas grandes empresas, que colocam publicidade e, por meio delas, condicionam o funcionamento da imprensa.

Uma imprensa que escolhe quem vai escrever, como e quando, alinhando-se abertamente – conforme confissão explicita disso – como partido politico da oposição. Uma imprensa que, apenas dos índices econômicos revelarem o oposto: a economia cresce, aumenta o nível de emprego, os salários sobem acima da inflação, a inflação está controlada – cria um clima de incerteza, de preocupação, de insegurança, que por sua vez, se reflete em pesquisas manipuladas. Essa a imprensa que temos hoje, que condiciona as chamadas “agências de risco”, que pressiona sistematicamente o governo pelo aumento da taxa de juros, que representa não a população, mas o capital financeiro.

A alternativa a essa mídia antidemocrática não é calá-la. É democratizar a formação da opinião publica, limitando o poder monopolista dos meios atuais, abrindo canais alternativos da mídia – TV, rádio, jornais, internet. Ao não avançar em nada nessa direção, o governo é vitima da monopolização antidemocrática da mídia.

A mídia criou um clima de “terrorismo econômico”. E no marco de um modelo hegemonizado pelo capital especulativo, sumamente volátil e sensível a movimentos bruscos, esse clima tem efeito, aqui e lá fora. E o governo assiste impassível a essas manobras que anulam as tentativas do governo de canalizar recursos para os investimentos produtivos. O governo reage defensivamente, aumentando sucessivamente a taxa de juros diante do fantasma artificialmente construído do risco inflacionário.  Reage exatamente como os especuladores e seus ventríloquos na mídia desejam – aumentando as tendências recessivas, pela atração dos capitais para a especulação.

Os boatos, o pânico forjado, o terrorismo da inflação, ao não ter respostas politicas, se tornam forças materiais e as auto profecias se cumprem, deixando o governo em um circulo vicioso. Sem democratização dos meios de comunicação, quebrando essa cadeia antidemocrática e especulativa, nem sequer a retomada do crescimento econômico será possível e sustentável. O dilema da mídia na democracia não é entre mídia monopolista ou silêncio, mas entre terrorismo econômico da ditadura midiática ou democratização dos meios de comunicação.

Fonte: Carta Maior

África: natureza e história

Um continente vítima do colonialismo, do neo-colonialismo e da escravidão não pode deixar de ter essas feridas expostas em toda a sua extensão. Fornecedora de matérias primas e de mão de obra escrava, a África foi esquartejada pelas potenciais coloniais e sugada em tocas as suas riquezas – materiais e humanas.

Em 1890 as potências coloniais europeias se reuniam em Berlim para completar entre elas a divisão da África. De tal forma primou a prepotência e a arbitrariedade, que fronteiras do norte da África foram feitas com régua na divisão entre os colonizadores, não importando se dividiam povos, rios, montanhas, cidades.

Quando as formas coloniais de exploração e dominação não foram mais possíveis, elas ganharam formas novas, com independências politicas, que logo passaram a aparecer como sistemas neo-coloniais, que reproduzem as velhas formas de dominação, sob formas novas. 

Os líderes que não se ajustavam a isso foram derrubados – como Ben Bella, na Argelia – ou assassinados – como Lumumba, no Congo. Trataram e tratam de expropriar a história da Africa, tentando reduzir o continente a um mundo de natureza, em que os conflitos seriam tribais, a miséria um efeito do atraso econômico, a cultura reduzida ao folclore.

Quando fizeram 20 anos do maior massacre das ultimas décadas na Africa, em Ruanda, entre hutus e toutsis, o governo atual não convidou a França, responsabilizando-se diretamente pelos acontecimentos, quando na época se anunciava que se tratava de um conflito  entre tribos locais. 

No entanto nenhum continente tem tanta história, nenhum foi e segue sendo tão essencial à instauração e à reprodução do capitalismo quanto a Africa. Fornecedora de matérias primas e de mão de obra barata, ela segue condenada pelo sistema imperial a essas funções essenciais ao capitalismo.

Hoje somente interessam às grandes potencias os países que possuem recursos estratégicos. Os outros permanecem condenados ao abandono, enquanto esses veem dilapidados seus recursos, sem nenhum retorno que melhore as condições de vida do povo desses países. EUA, China, França, Inglaterra, entre outros, apenas exploram os recursos naturais onde lhes interessam, sem nenhum outro tipo de intercambio que possa fazer reverter essa exploração em beneficio das condições miseráveis de boa parte da população africana.

A história africana reflete a trajetória das civilizações mais antigas da humanidade, com toda sua riqueza, sua cultura, suas contradições, seus conflitos. Uma história sobre a qual se impuseram as potencias coloniais, com a mais brutal exploração seus recursos naturais e da sua gente, submetida ao pior crime contra a humanidade – a escravidão.

Hoje a África segue sendo marginalizada politicamente, explorada economicamente, discriminada ideologicamente. É objeto dos interesses das grandes corporações multinacionais, apoiada pelos governos desses países. Raros governos e institucionais internacionais tem uma atitude de solidariedade com os países africanos.


fonte: Carta Maior

Países que reduziram maioridade penal não diminuíram a violência

Voltou à pauta do Congresso, por insistência do PSDB, a proposta de criminalizar menores de 18 anos via redução da maioridade penal.
De que adianta? Nossa legislação já responsabiliza toda pessoa acima de 12 anos por atos ilegais. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, o menor infrator deve merecer medidas socioeducativas, como advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. A medida é aplicada segundo a gravidade da infração.
Nos 54 países que reduziram a maioridade penal não se registrou redução da violência. A Espanha e a Alemanha voltaram atrás na decisão de criminalizar menores de 18 anos. Hoje, 70% dos países estabelecem 18 anos como idade penal mínima.
O índice de reincidência em nossas prisões é de 70%. Não existe, no Brasil, política penitenciária, nem intenção do Estado de recuperar os detentos. Uma reforma prisional seria tão necessária e urgente quanto a reforma política. As delegacias funcionam como escola de ensino fundamental para o crime; os cadeiões, como ensino médio; as penitenciárias, como universidades.
O ingresso precoce de adolescentes em nosso sistema carcerário só faria aumentar o número de bandidos, pois tornaria muitos deles distantes de qualquer medida socioeducativa. Ficariam trancafiados como mortos-vivos, sujeitos à violência, inclusive sexual, das facções que reinam em nossas prisões.

rReduzir a maioridade penal é tratar o efeito, e não a causa. Ninguém nasce delinquente ou criminoso. Um jovem ingressa no crime devido à falta de escolaridade, de afeto familiar, e por pressão consumista que o convence de que só terá seu valor reconhecido socialmente se portar determinados produtos de grife.
Enfim, o menor infrator é resultado do descaso do Estado, que não garante a tantas crianças creches e educação de qualidade; áreas de esporte, arte e lazer; e a seus pais trabalho decente ou uma renda mínima para que possam subsistir com dignidade em caso de desemprego.
Segundo o PNAD, o adolescente que opta pelo ensino médio, aliado ao curso técnico, ganha em média 12,5% a mais do que aquele que fez o ensino médio comum. No entanto, ainda são raros cursos técnicos no Brasil.
Hoje, os adolescentes entre 14 e 17 anos são responsáveis por consumir 6% das bebidas vendidas em todo o território nacional. A quem caberia fiscalizar? Por que se permite que atletas e artistas de renome façam propaganda de cerveja na TV e na internet? A de cigarro está proibida, como se o tabaco fosse mais nocivo à saúde que o álcool. Alguém já viu um motorista matar um pedestre por dirigir sob o efeito do fumo?
Pesquisas indicam que o primeiro gole de bebidas alcoólicas ocorre entre os 11 e os 13 anos. E que, nos últimos anos, o número de mortes de jovens cresceu 15 vezes mais do que o observado em outras faixas etárias. De 15 a 19 anos, a mortalidade aumentou 21,4%.
Portanto, não basta reduzir a maioridade penal e instalar UPPs em áreas consideradas violentas. O traficante não espera que seu filho seja bandido, e sim doutor. Por que, junto com a polícia pacificadora, não ingressam, nas áreas dominadas por bandidos, escolas, oficinas de música, teatro, literatura e praças de esportes?
Punidos deveriam ser aqueles que utilizam menores na prática de crimes. E eles costumam ser hóspedes do Estado que, cego, permite que dentro das cadeias as facções criminosas monitorem, por celulares, todo tipo de violência contra os cidadãos.
Que tal criminalizar o poder público por conivência com o crime organizado? Bem dizia o filósofo Carlito Maia: “O problema do menor é o maior.”

Independências, o novo fantasma europeu

A abertura do grande romance de amor e tragédia de Tolstoi poderia ser uma metáfora da Europa de hoje, onde “famílias infelizes” de catalães, escoceses, belgas, ucranianos e italianos consideram divorciar-se dos países de que são parte. E, em mais um caso em que a realidade imita a ficção, cada uma delas é infeliz à sua própria maneira.

Enquanto os Estados Unidos e seus aliados exasperam-se com o recente referendo na Crimeia, que separou a província da Ucrânia, os escoceses viverão uma consulta muito similar em 18 de setembro e os catalães gostariam muito de fazer o mesmo. Assim como os habitantes do Tirol do Sul e a população de língua flamenga do norte da Bélgica.
Na aparência, muitos destes movimentos de secessão sugerem que regiões ricas estão tentando “libertar-se” de outras mais pobres. Mas ainda que haja alguma verdade nisso, a fórmula é muito simplista. No norte da Bélgica, os flamengófonos, mais ricos, querem separar-se dos francófonos despreocupados do Sul, assim como os tiroleses gostariam de se separar da Itália meridional, castigada pela pobreza. Mas na Escócia, muito da luta tem a ver com a preservação do contrato social que os governos do “novo” Partido Trabalhista – agora conservador – e do Partido Conservador – de direita – desmantelaram sistematicamente. O caso da Catalunha, bem, é complicado.
As fronteiras europeias podem parecer imutáveis, mas certamente não o são. Foram deslocadas várias vezes – pela guerra, necessidades econômicas ou porque os poderosos desenharam linhas caprichosas que ignoram a história e a etnicidade. A Crimeia, conquistada por Catarina, a Grande, em 1783, foi arbitrariamente cedida à Ucrânia, em 1954. A Bélgica resultou de um congresso das potências europeias, em 1830. A Escócia, empobrecida, ligou-se à ria Inglaterra, em 1707. A Catalunha caiu diante dos exércitos espanhol e francês em 1714. E o Tirol do Sul foi um espólio da Primeira Guerra Mundial.
Em todos os casos, ruídos históricos, desenvolvimento injusto e tensões étnicas foram exacerbados por um crise econômica de longa duração. Nada como o desemprego e as políticas de “austeridade” para acender as fogueiras da secessão. Os dois movimentos separatistas mais fortes estão na Escócia e Catalunha – e são os que podem ter impacto mais profundo no resto da Europa.
As regiões são infelizes de diferentes maneiras.
Escócia
A Escócia sempre teve um partido nacionalista expressivo, embora marginal – mas foi dominada tradicionalmente pelo Partido Trabalhista britânico. Os Conservadores quase não existiam a norte do rio Tweed. Mas o “novo trabalhismo” do ex-primeiro-ministro Tony Blair adotou cortes de investimentos públicos e privatizações que marginalizaram muitos escoceses, obrigados a gastar mais com Saúde e Educação que o resto dos britânicos.
Quando o Partido Conservador ganhou as eleições, em 2010, seu orçamento de “austeridade” devastou a Educação, Saúde, os subsídios para Habitação e o Transporte. Os escoceses, irados, votaram no Partido Nacional Escocês (SNP), nas eleições de 2011 para o parlamento local. O SNP imediatamente propôs um plebiscito que indagará aos eleitores se querem revogar o Ato de União de 1707 e voltar a ser um país independente. Se a resposta for sim, o SNP propõe renacionalizar o correio e expulsar da Escócia os submarinos britânicos Trident, dotados de mísseis nucleares.
Levando em conta o petróleo do Mar do Norte, quase não há dúvidas de que uma Escócia independente seria viável. O país tem um PIB per capita mais alto que o da França e, além de petróleo, exporta bens industriais e uísque. A Escócia seria um dos 35 países com maiores receitas de exportação.
O governo britânico do Partido Conservador diz que, se a Escócia votar pela independência, não poderá mais utilizar a libra como moeda. Os escoceses dizem que se a ameaça for mantida, não assumirão mais responsabilidade por sua parcela na dívida pública britânica. Neste ponto, há um impasse.
Segundo os britânicos, e alguns tecnocratas em posições de poder na União Europeia (UE), uma Escócia independente não poderá permanecer integrada ao bloco europeu, mas isso pode ser um blefe. Primeiro, porque contrariaria precedentes históricos. Quando a Alemanha reunificou-se, em 1990, cerca de 20 milhões de habitantes do país oriental (a República Democrática Alemã) foram automaticamente reconhecidos como cidadãos da UE. Se 5,3 milhões de escoceses foram excluídos, será por ressentimento, não por política. De qualquer forma, como o Partido Conservador britânico planeja, em 2017, um referendo que poderia separar a Grã-Bretanha da União Europeia, Londres não está apostando todas as fichas numa postura de intransigência…
Se as eleições fossem hoje, os escoceses provavelmente optariam por permanecer no Reino Unido, mas as tendências estão mudando. A pesquisa mais recente indica que 40% votarão pela independência – um avanço de 3 pontos percentuais, em relação à sondagem anterior. A parcela dos eleitores contrária à independência caiu 2 pontos percentuais, e agora representa 45% do total. Há 15% de indecisos. Todos os residentes na Escócia com mais de 16 anos podem votar. Dada a formidável habilidade eleitoral de Alex Salmod, o primeiro-ministro da Escócia e líder do SNP, as perspectivas não são tranquilizadoras para o governo de Londres.
Catalunha
A Catalunha, situada no Nordeste da Espanha bem junto à fronteira com a França, foi sempre um motor da economia espanhola e uma região marcada por sensação de injustiça histórica. Conquistada pelos exércitos unidos da França e Espanha, na guerra de secessão espanhola (1701-1714), foi também derrotada na Guerra Civil espanhola, entre 1936 e 39. Em 1940, os fascistas, triunfantes, suprimiram o uso do idioma catalão, reprimiram sua cultura e executaram o presidente da região, Lluis Companys – um ato pelo qual nenhum governo de Madri desculpou-se até hoje.
Após a morte do ditador Francisco Franco, em 1975, a Espanha buscou reconstruir sua democracia, sepultando as animosidades profundas engendradas pela Guerra Civil. Mas os mortos podem não permanecer enterrados para sempre, e cresce um movimento pela independência catalã.
Em 2006, a região conquistou autonomia considerável, mas ela foi revogada pelo Supremo Tribunal espanhol em 2010, para alegria do Partido Popular (PP, conservador), no poder. A decisão serviu de combustível para o movimento pela independência da Catalunha e em 2012 partidos separatistas chegaram ao poder.
O PP, do primeiro-ministro Mariano Rajoy, é uma preocupação permanente na Catalunha, cujo parlamento é dominado por diversos partidos independentistas. O maior deles é a Convergencia i Unio (CiU), do presidente provincial, Artur Mas. Porém, aEsquerra Republicana de Catalunya (ERC) dobrou, há pouco, sua representação legislativa.
Estes partidos divergem entre si. Muitos tendem a ser centristas ou conservadores, enquanto o ERC é de esquerda e se opõe às políticas de “austeridade” do PP – algumas das quais foram adotadas também pelo CiU. O centrismo deste partido é uma das razões pelas quais sua bancada caiu de 62 deputados para 50, nas eleições de 2012, enquanto a do ERC saltou de dez para 21.
A taxa oficial de desemprego na Espanha é de 25%, mas o índice é bem mais alto entre os jovens e nas regiões do Sul – e a esquerda parece disposta a ir à luta. Mais de 100 mil pessoas marcharam em Madri, no mês passado, exigindo o fim da “austeridade”.
Dizendo apoiar-se na Constituição de 1976, Rajoy recusa-se a permitir um referendo de independência, uma intransigência que alimentou a chama do movimento separatista. Em janeiro, o parlamento catalão votou, por 87 a 43, por realizar o referendo, e as pesquisas mostram uma maioria em favor da separação. Há seis meses, um milhão e meio de catalães marcharam em Barcelona pela independência.
De olho no eleitorado de direita, o PP também radicalizou e parece disposto a provocar os catalães. Quando a Catalunha proibiu as touradas, Madri aprovou uma lei que as considera herança cultural da nação. Os bascos podem arrecadar seus próprios impostos; os catalães, não.
Como a União Europeia reagiria a uma Catalunha independente? E o governo central de Madri faria algo para impedir o passo? É difícil imaginar o envolvimento do exército espanhol, embora o partido de Rajoy tenha entre seus fundadores um ex-ministro do governo franquista e a reivalidade entre Madri e Barcelona seja evidente.
Outras linhas de ruptura
Há outras linhas de ruptura na Europa.
A Bélgica poderá se dividir? A fissura entre os flamengófonos (no norte) e os francófonos (no sul) é tão profunda que foram necessários dezoito meses para formar um governo, após a última eleição. E se a pequena Bélgica rachar, ela dará origem a dois países, ou será engolida pela França e Holanda?
Na Itália, o Partido da Liberdade do Tirol do Sul reivindica um referendo de independência e uma fusão com a Áustria, embora a minúscula província, – chamada na Itália e Alto Adige – quase não tenha do quê se queixar. Ela retém 90% dos impostos que arrecada, e sua economia conseguiu evitar o pior da crise de 2008. Mas parte da população germano-austríaca ressente-se de cada centavo transferido a Roma e há um profundo preconceito contra os italianos – que constituem 25% dos habitantes – particularmente, os do Sul. Nesse sentido, o Partido da Liberdade não é muito diferente da Lega Norte, racista e elitista, que tem como base o Vale do Po.
É instrutivo assistir a um vídeo, no YouTube, sobre como as fronteiras da Europa mudaram, de 1519 a 2006 – um período de menos de 500 anos. O que julgamos eterno é efêmero. O continente europeu está novamente à deriva, tensionado por linhas de ruptura antigas e contemporâneas. A atitude de países como Espanha e a Grã-Bretanha, e de organizações como a União Europeia diante deste processo determinará seu caráter – se civilizado ou doloroso. Mas tentar interrompê-lo causará, muito provavelmente, apenas mais dor.

O golpe contra os trabalhadores

Por Paulo Fontes
Em recente editorial no qual reconhece que o apoio ao golpe de 1964 foi um erro, o jornal O Globo justifica de forma reveladora que seu entusiasmo com a queda do governo de João Goulart era devido ao temor da instalação de uma suposta “República Sindical” no país. A retórica anticomunista e a histeria conservadora que contagiavam vastos setores das classes médias e altas tinham um alvo claro: o crescimento da organização de operários e de vastos setores populares nas cidades, bem como a impressionante mobilização de camponeses nas zonas rurais. O inédito espaço político conquistado por lideranças sindicais incomodava e amedrontava. O golpe de 1964 foi, antes de tudo e sobretudo, um golpe contra os trabalhadores e suas organizações.
A presença pública e as lutas por direitos dos trabalhadores brasileiros, intensas desde o final da II Guerra Mundial, atingiriam seu ápice no início da década de 1960. Os sindicatos foram os principais vetores da organização popular naqueles anos. Mas tal mobilização também ocorria através de associações de moradores e espaços informais, como clubes de bairros e instituições culturais. Estudos recentes mostram que, ao contrário do que se supunha, a presença sindical nos locais de trabalho se fortalecia. No campo, a emergência das Ligas Camponesas, e suas demandas por uma Reforma Agrária transformadora, surpreendeu o país e colocou os trabalhadores rurais no centro do cenário político.
Trabalhistas, católicos, comunistas, janistas, entre diversas outras forças políticas, disputavam e formavam alianças no interior deste movimento. Greves, protestos e uma linguagem marcadamente nacionalista e reformista embalavam reivindicações por transformações estruturais e pela conquista de direitos desde sempre negados, como a lei do 13o salário e a sindicalização no campo.
Em um contexto marcado pela Guerra Fria e pelos impactos da Revolução Cubana, esta presença pública dos trabalhadores significava, para muitos, a antesala do comunismo. A desenvoltura com que lideranças camponesas e dirigentes do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) se aproximavam do governo e do presidente Jango (nunca perdoado por cultivar essas “relações perigosas”) era particularmente execrada. A visibilidade desta aliança no famoso comício da Central do Brasil no dia 13 de março foi a gota d’água para os grupos conservadores e golpistas. Apesar da intensa campanha contra o governo, pesquisas de opinião então realizadas, e durante muito tempo ocultadas, mostram que a maioria da população apoiava Jango e suas reformas.
O golpe acabou com tudo aquilo. E surpreendeu muitos dirigentes sindicais, radicalizados e demasiadamente confiantes na sua influência política e poder de mobilização. Para os vitoriosos, era primordial destruir a “hidra comunista e trabalhista”. Sindicatos em todo o país foram invadidos, sofreram intervenções governamentais e tiveram seu patrimônio dilapidado. Suas lideranças foram presas, caçadas e, algumas, assassinadas. A ditadura foi dura desde seu primeiro dia.
Entidades empresarias, como a FIESP, celebraram a nova era. A queda do governo foi a senha para a revanche patronal. Milhares de trabalhadores foram demitidos e, devido à proliferação das infames “listas negras”, tiveram enormes dificuldades para encontrar novos empregos. A aliança entre empresários e o DOPS que, como historiadores já demonstraram, vinha de longe, tornou-se ainda mais sólida e disseminada. Um clima de medo e perseguições passaria a dominar o interior das empresas. No campo, um número ainda não calculado de trabalhadores rurais foi expulso de suas comunidades e muitos foram mortos por milícias privadas e capangas a serviço de latifundiários.
Uma política econômica antitrabalhista proibiu greves, comprimiu salários, acabou com a estabilidade no emprego, facilitando demissões e a rotatividade da mão de obra. Seu impacto foi tão grande que o ditador Castello Branco viu-se obrigado a reiteradamente repetir, em vão, que “a Revolução não era contra os trabalhadores”. O deliberado enfraquecimento dos sindicatos facilitou em muito a superexploração do trabalho, uma das marcas do regime, que faria do país o campeão mundial em acidentes e mortes no trabalho no início dos anos 1970.
A mesma ditadura que tanto reprimiu e controlou os sindicatos e organizações populares chegaria ao fim, em grande medida, pela força e mobilização dos trabalhadores. Fruto de uma persistente resistência cotidiana e de transformações de vulto na sociedade brasileira, as grandes greves que, a partir do ABC paulista, tomaram conta do país, clamaram novamente por justiça e democracia. Ao mesmo tempo revitalizaram o sindicalismo e deixaram marcas presentes até hoje em nossa vida política e social.
No entanto, ainda sabemos pouco sobre a história dos trabalhadores durante a Ditadura Civil-Militar. Boa parte do interesse dos estudiosos sobre o período concentrou-se em outros grupos sociais e temas, o que se reflete na literatura e na programação dos numerosos eventos que analisam os 50 anos do golpe. Felizmente, este quadro começa a mudar. Neste sentido, a abertura dos arquivos governamentais, incluindo o do Ministério do Trabalho, cuja documentação apodrece, sem cuidado algum, em um prédio da periferia de Brasília, é um passo fundamental. E sem dúvida, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade poderá ter um papel decisivo neste encontro do Brasil com sua história.

Marco Civil da Internet: a batalha no Senado

Por Sergio Amadeu
O texto do Marco Civil foi aprovado na Câmara dos Deputados, garantindo uma versão mais alinhada à proposta construída pela sociedade civil em um extenso debate, desde 2009, sobre o tema. Entretanto, a matéria ainda precisa ser aprovada pelo Senado para que possa ser sancionada pela Presidência da República. De um lado, ativistas pela liberdade na rede; de outro, uma bancada conservadora que tende a uma visão mais alinhada aos interesses das empresas de telecomunicação. Soldados das duas trincheiras se preparam em busca de um só objetivo, o Marco Civil da Internet. A primeira batalha foi vencida pelos ativistas, mas esse foi apenas o primeiro capítulo de uma guerra que está recém começando.
“O texto do Marco Civil da Internet defende claramente a neutralidade da rede e assegura que a internet continue livre, aberta e diversificada. Nós conseguimos impedir os ataques mais fortes das operadoras”, explica Sérgio Amadeu, em entrevista por telefone à IHU On-Line. Entretanto, ele explica que há tensionamentos no texto. “Sem dúvida alguma, as companhias de telefonia, junto com um grupo de deputados conservadores, inseriram no Marco Civil alguns dispositivos que são ruins, mas que não prejudicam a essência do projeto, nem destroem a neutralidade na rede”, considera.
Segundo dados do Portal de Notícias do Senado, o texto que foi enviado pela Câmara dos Deputados já recebeu 41 emendas. “Elas (as companhias de telecomunicações) já estão organizando o lobby das operadoras com o Senado numa tentativa de alterar a redação da neutralidade. Por isso nós estamos nos preparando para uma batalha, porque se o projeto de lei for mudado no Senado, ele volta para a Câmara, e não volta para ser melhorado, volta para ser piorado”, destaca o entrevistado.
Sérgio Amadeu, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP, participou da implementação dos Telecentros, na América Latina, e da criação do Comitê de Implementação de Software Livre – CISL. Também foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação – ITI da Casa Civil da Presidência da República. É professor na Universidade Federal do ABC – UFABC. É autor de, entre outros, Software Livre: a luta pela liberdade do conhecimento; Exclusão digital: a miséria na era da informação (São Paulo: Perseu Abramo, 2001); e Comunicação Digital e a Construção dos Commons: redes virais, espectro aberto e as novas possibilidades de regulação.
Confira a entrevista.
Afinal de contas, depois de todas as quedas de braço entre as empresas de telecomunicação e ativistas, de que maneira ficou o texto do Marco Civil da Internet enviado ao Senado?
Sérgio Amadeu – O texto do Marco Civil da Internet defende claramente a neutralidade da rede. Ele é o texto que assegura que a internet continue livre, aberta e diversificada.
Nós conseguimos impedir os ataques mais fortes das operadoras. Sem dúvida alguma, as companhias de telefonia, junto com um grupo de deputados conservadores, inseriram no Marco Civil alguns dispositivos que são ruins, e que já estão organizando o lobby das operadoras com o Senado, numa tentativa de alterar a redação da neutralidade. Por isso, nós estamos nos preparando para uma batalha, porque se o projeto de lei for mudado no Senado, ele volta para a Câmara, e não volta para ser melhorado, volta para ser piorado.
Quanto mais interferência das empresas de telecomunicações, mais haverá influência no financiamento de campanha, aumento do poder das teles e da força delas junto aos grupos de deputados pragmáticos – que não têm nenhum compromisso com as causas finais, mas apenas com a suas reeleições.
Assim, eu conclamo a todos para nos ajudar a pressionar o Senado, para que possamos ter a Internet mais avançada no mundo. Quem acha isso não são apenas os ativistas da liberdade da rede no Brasil, são pessoas que sempre lutaram pela liberdade e ajudaram a construir a Internet, como o criador da web, Tim Berners-Lee, que recentemente pediu apoio pela aprovação do marco civil com neutralidade da rede. Então, nós estamos ganhando, por enquanto nós estamos ganhando!
O atual texto da Lei está mais próximo da proposta construída coletivamente desde 2009, por meio das audiências públicas, ou mais próximo aos interesses corporativos?
Ele ficou mais próximo da proposta da Sociedade Civil, apesar de ter tido várias idas e vindas. Quero lembrar, inclusive, que eu me opus a uma das redações dele, referentes ao segundo parágrafo no artigo 15 [1], que inaugurava no Brasil a remoção de conteúdos com ordem judicial a pedido da Rede Globo e da indústria do copyright. Foi feito um acordo e eles retiraram isso; nós conseguimos vencer. Há alguns problemas que advêm do fato de o relator ter incorporado alguns textos vindos de bancadas conservadoras, que do contrário não votariam no projeto. Então, o projeto da sociedade civil era bem mais avançado, mas eu considero uma vitória descomunal o fato de o projeto ter passado por um Congresso Nacional tão conservador como o nosso.
Nós estamos prestes a ter uma vitória colossal no mundo. Queria deixar isso claro. Em todo o planeta, nós estamos vivenciando leis para criminalizar, bloquear e controlar a Internet.
No Brasil, o Marco Civil vem para fazer com que a Internet continue livre e aberta. Vários jornalistas me perguntavam: “Mas o que muda na vida do cidadão com a aprovação do Marco Civil?” Eu falava: “Olha, não muda nada! A Internet continuará livre, coisa que não vai acontecer se a gente não aprovar rapidamente o Marco Civil”. Por quê? Porque as operadoras de telefonia já articulam uma série de ações para gradativamente ir transformando a internet em uma grande rede de TV a cabo.
É possível apontar alguma brecha na legislação que permita interpretações no sentido de impactar a neutralidade da rede e mesmo a privacidade?
Sim, existe. Por exemplo: as operadoras de telefonia fizeram um ‘cavalo de batalha’ e conseguiram incluir no artigo 3º [2] um princípio – o da liberdade de modelo de negócios, desde que respeitando os demais princípios da lei –, e ele nos dará neutralidade. Mas por que eles fizeram questão de colocar essa redação? Exatamente para poder brigar depois no Judiciário. Sabendo que eles podem perder, e sem a aprovação do Marco Civil, eles querem continuar a disputa, continuar a guerra, e a guerra vai virar jurídica, com a interpretação do que for aprovado no Marco Civil. Então, nós temos aí um exemplo claro.
Nós também temos outro problema: eles se aliaram aos setores conservadores e conseguiram iniciar a guarda de lobby por aplicação. Isso significa que todas as empresas de comerciais que têm aplicações na web vão ter que guardar lobby por um período de tempo obrigatoriamente, o que permite o manejo de dados e o uso como várias empresas fazem.
Isto é, vão organizar o nosso perfil para entender o comportamento das pessoas que acessam seus sites. Na verdade, ao invés de estarem impedindo que as empresas guardem os metadados que caracterizam nossa ação na rede, que elas manipulem os nossos rastros digitais, esses grupos de conservadores estão na contramão, estão fazendo de tudo para quebrar a nossa privacidade. Eles dizem que fazem isso em defesa da nossa segurança. E eu digo que, quando se abre mão da privacidade, da intimidade, em troca da segurança, na verdade se está construindo um cenário totalitário, autoritário, e que no momento seguinte vira exatamente o seu oposto, que é a incerteza, a insegurança, a chantagem, o controle por parte das corporações. Agora eles colocaram isso no Marco Civil – a guarda de lobby e aplicação sobre o período de tempo –, mas nós temos além de dados pessoais que vão ser enviados ao Congresso, onde nós trataremos exatamente desse assunto de modo detalhado. Assim, não é um grande prejuízo colocar isso no Marco Civil, porque, no que se refere ao projeto de dados pessoais, nós vamos poder efetivamente travar uma batalha em defesa da privacidade. Então, já alerto a todos que a guerra mal começou.
Deseja acrescentar algo?
Nós temos chances de aprovar o Marco Civil no Senado, mas não vai ser tão simples. Nós vamos ter que começar a nos mobilizar, porque não está fácil!
Notas
1 – Art. 15 – Salvo disposição legal em contrário, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.
2 – Art. 3º – A disciplina do uso da Internet no Brasil tem os seguintes princípios:
I – garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição;
II – proteção da privacidade;
III – proteção aos dados pessoais, na forma da lei;
IV – preservação e garantia da neutralidade da rede, conforme regulamentação;
V – preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas;
VI – responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei; e
VII – preservação da natureza participativa da rede.
Parágrafo único. Os princípios expressos nesta Lei não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria, ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Amor livre e emancipação na Revolução Russa

Por Marsílea Gombata
Antes mesmo da revolução sexual dos anos 60, a ideia de amor livre já rondava a sociedade russa. Em 1917, quando os bolcheviques chegaram ao poder, o norte de uma sociedade mais igualitária passava também por questionar a monogamia, emancipar e dar direitos iguais às mulheres, que deixariam as tarefas domésticas para alcançar condições materiais semelhantes às dos homens. É o que mostra o livro Mulher, Estado e Revolução, recém-lançado pela editora Boitempo. Nele, a historiadora Wendy Goldman explica como a Revolução Russa e seus frutos modelaram os eventos do século XX de maneira tão profunda a ponto de seus ecos ressoarem até os dias de hoje.
Segundo Goldman, especialista em história da Rússia e da União Soviética, apesar de o stalinismo e as forças repressoras terem ajudado a esvaziar o que era inicialmente a revolução e seu significado, o grande experimento soviético tem muito a ensinar. Wendy combina história política e social para recuperar tanto os ideais debatidos por juristas e políticos, como também o cotidiano de operárias e camponesas 100 anos atrás. “Os bolcheviques lutavam para que, sob o socialismo, a instituição ‘família’ definhasse; para que o trabalho doméstico não remunerado das mulheres fosse substituído por lavanderias, creches e refeitórios comunitários; para que o afeto e o respeito mútuos substituíssem a dependência jurídica e financeira como base das relações entre os gêneros. Uma geração de legisladores soviéticos se empenhou em concretizar essa visão e, como parte dela, em 1920, legalizaram o aborto, que passou a ser considerado um serviço público e gratuito”, lembra Goldman em um trecho do livro.
“Quase um século se passou, e ainda lutamos por essas mesmas coisas em diferentes regiões ao redor do mundo. Mesmo nos Estados Unidos, apesar de o aborto ser legalizado, existe um movimento para torná-lo ilegal novamente. Então, as mulheres são obrigadas a lutar para exercer um direito que lhe é seu”, disse, em entrevista a CartaCapital, a professora da Carnegie Mellon University (Pittsburgh, EUA).
Mas por que saber como pensavam os russos em relação ao papel da mulher na sociedade? A ideia, segundo Wendy, é aprendermos com os erros do passado para ir adiante na luta por aquilo que ainda precisa ser modificado. A tentativa não é de hoje. Inspiradas pela Revolução Russa, gerações sucessivas, como a da luta de trabalhadores industriais, de rebeliões camponesas dos anos 30, da resistência antifascista da Segunda Guerra, dos movimentos anticolonialistas, das revoltas estudantis dos anos 60 e 70, e dos mais recentes protestos bebem da fonte bolchevique, segundo Goldman.
Repetição. Logo no início de sua pesquisa, Goldman se deu conta de que a dinâmica entre homens e mulheres na sociedade patriarcal russa se refletia na própria política e nos núcleos que se diziam progressistas. “Os homens faziam longos e intensos discursos nos encontros; as mulheres falavam menos e com menos confiança. Os homens pareciam ter o domínio de importantes textos teóricos; as mulheres ficavam menos confortáveis com a teoria e em demonstrar suas habilidades intelectuais. Resumindo, as relações de gênero entre jovens radicais, em última instância, eram uma réplica do que acontecia na sociedade como um todo”, lembra no livro.
A explicação, segundo ela, reside em raízes antropológicas. “Creio que a mulher, de modo geral, foi treinada socialmente para dar apoio ao homem. Historicamente não é permitido a elas falarem livremente, serem firmes ou darem passos de maneira independente”, analisa. “Na Rússia de 1917, era difícil para as mulheres sentirem que tinham igualdade política dentro do Partido Comunista ou nos sindicatos. Elas se viam diante de obstáculos à igualdade com os homens. E, se formos reparar, lidamos com esse legado ainda nos dias de hoje.”
Na Rússia do início dos anos 20, as mulheres iam ingressado na força de trabalho, mas ainda eram responsáveis por criar os filhos, cozinhar e limpar a casa. As responsabilidades domésticas impediam-nas de ingressar nos domínios públicos do trabalho, da política e de projetos criativos em pé de igualdade com os homens. Segundo os bolcheviques, para quem o capitalismo jamais seria capaz de trazer uma solução para a dupla jornada das mulheres, somente o socialismo resolveria a contradição entre trabalho e família. A ideia era que, sob o regime socialista, o trabalho doméstico fosse transferido para a esfera pública, explica o livro: “As tarefas realizadas individualmente por milhões de mulheres não pagas em suas casas seriam assumidas por trabalhadores assalariados em refeitórios, lavanderias e creches comunitários. (…) A cozinha particular seria substituída pelo refeitório público. A costura, a limpeza e a lavagem, assim como a mineração, a metalurgia e a produção de maquinário, se transformariam em ramos da economia do povo.”
O próprio Lênin escreveu repetidas vezes sobre a necessidade de socializar o trabalho doméstico, já que o via como “o mais improdutivo, o mais selvagem e o mais árduo trabalho que a mulher pode fazer”. Assim, contra a atividade que descreveu como banal, improdutiva, torturante e atrofiante, ele argumentava que a verdadeira emancipação da mulher deveria incluir não apenas igualdade perante as leis, mas também a transformação do trabalho doméstico em trabalho socializado.
No entanto, o que levaria à maior independência da mulher e à consequente facilitação do divórcio esbarrou em condições materiais. “Quando as mulheres vão para as fábricas e começam a fazer o trabalho dos homens, se veem em meio à contradição de não conseguir cuidar de seus filhos. Isso faz muitas começarem a se opor ao divórcio facilitado porque não tinham como sustentar sozinhas a família”, observa Goldman.
O livro, que retrata as experiências da libertação da mulher e do amor livre na União Soviética de 1917 até 1936, quando o regime já se encontrava sob o controle da burocracia stalinista, analisa o difícil embate entre vida cotidiana e os ideais de uma sociedade justa. Não apenas o divórcio sofreu um revés. Uma década depois, com a chegada de Stalin ao comando, a legalidade do aborto também foi revogada.
Como, então, colocar em prática valores que desejamos ver implementados em uma nova sociedade? Como devem ser as novas relações entre homens e mulheres? É possível haver liberdade para homens e mulheres sob condições de desemprego e discriminação em um universo patriarcal? Para Goldman, a resposta é “não”. “Para se ter liberdade e liberação sexual é preciso haver primeiro condições materiais igualitárias. Isso significa as pessoas poderem se manter por elas mesmas, serem economicamente independentes, conseguirem sustentar seus filhos, terem livre acesso ao controle de natalidade e ao direito de abortar, ao mesmo tempo em que possam vender sua força de trabalho”, observou. “Para ideias libertárias serem exitosas, temos de ter bases materiais. Se a mulher não for capaz de se sustentar, de criar seus filhos e ainda tiver de cuidar da casa, então esses ideais não significarão nada.”

6 formas de discutir gênero na sala de aula

Para professores que desejam trabalhar questões de gênero com os seus alunos em sala de aula, uma lista com dicas de conteúdos sobre tolerância, violência contra a mulher e desigualdades
O resultado de uma pesquisa divulgada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada) no dia 27 de março causou polêmica e indignação. O estudo então revelou que 65% dos brasileiros concordam com a afirmação de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas.” No dia 4, depois de já ter causado inúmeras reações e discussões nas redes sociais, esse índice foi corrigido para 26%.
Entre as reações, a jornalista Nana Queiroz, moradora do Distrito Federal, criou um evento no Facebook que convocava mulheres a se fotografarem seminuas segurando um cartaz com a frase “eu não mereço ser estuprada.” O protesto virtual contou com a adesão de mais de 42 mil usuários, entre mulheres e homens que também decidiram abraçar a causa. No domingo (30/3), o tema foi um dos mais mencionados no Twitter. Até a presidente Dilma Rousseff se manifestou pela rede social em apoio a jornalista Nana Queiroz e a todas as mulheres ameaçadas ou vítimas de violência.
Para professores que desejam aproveitar o momento para trabalhar questões de gênero com os seus alunos em sala de aula, o Porvir preparou uma lista com 6 dicas de conteúdos sobre tolerância, violência contra a mulher e desigualdades. As dicas foram pesquisadas na plataforma Escola Digital e em recentes sugestões ligadas ao tema. Confira a lista para o ensino fundamental e médio:
Baseado em dados do censo 2010, realizado pelo IBGE, o infográfico apresenta aspectos e perfil da nova mulher brasileira. Com navegação interativa pelas ilustrações, o usuário pode acessar dados sobre o espaço da mulher no mercado de trabalho, as disparidades de salários entre gêneros e a presença feminina no ensino superior.
A partir de um trecho do filme Narradores de Javé, obra brasileira dirigida por Eliane Caffé, é possível trabalhar as discussões sobre minorias e preconceito de gênero. O filme narra acontecimentos da pequena cidade de Javé, que seria submersa pelas águas de uma represa. No decorrer da obra são apresentadas questões que mostram o esquecimento das mulheres na história da cidade, que foi fundada pela heroína Maria Dima.
De forma divertida e bem humorada, o vídeo apresenta a legislação sobre a violência contra a mulher em forma de cordel. O vídeo está disponível no YouTube e possui duração de 5:56. Ele faz parte do DVD Mulher de Lei, do cantor e educador cearense Tião Simpatia. A linguagem é ilustrativa e simples de entender.
4 - Women in the 19th Century: Crash Course US History #16
Se o professor desejar estabelecer um paralelo sobre as discussões sobre gênero nos EUA, o vídeo Women in the 19th Century, disponibilizado no YouTube, pode ser uma boa ferramenta. Ele apresenta como as questões de igualdade de direitos e sufrágio universal foram abordadas pelas mulheres do século XIX, nos EUA.
Para dar base as discussões do ensino superior, também selecionamos duas opções:
O mooc Diálogos sobre Feminismo e Tecnologia conta com a colaboração de participantes para destacar o protagonismo feminino. Na plataforma, os próprios estudantes conseguem escrever e compartilhar informações adicionais sobre o tema.
A coluna publicada on-line por Kelly J. Baker, Ph.D. em religião da Universidade Estadual da Flórida, se propõe a discutir questões sobre gênero, o papel da mulher no século 21 e desigualdades. Os textos podem servir de base para análises e discussões em sala de aula.

A privatização da guerra em debate

Desde o fim da Guerra Fria e particularmente durante os conflitos do Afeganistão (2001) e Iraque (2003), empresas militares e de segurança privadas (EMP) apoiam exércitos em diversas tarefas. O resultado: uma indústria transnacional que faz parte da economia de guerra e, ao mesmo tempo, dos processos de pacificação e reconstrução.

Atualmente, os serviços das chamadas empresas militares e de segurança privadas (EPM) têm sido cada vez mais requisitados. Entre seus maiores contratadores estão governos, organizações internacionais – como a própria ONU – e até poderosos empresários do mundo árabe.
Há gama de funções desempenhadas por essas empresas. A Estados em situação de conflito, oferecem apoio na área de transporte, logística, treinamento de tropas, recrutamento de soldados terceirizados, proteção de pessoas e instalações militares, manutenção da tecnologia armamentista e até inteligência. A ONGs e entidades internacionais, garantem proteção e segurança em cenários de instabilidade. Seu amplo mercado consumidor determina que, no fim das contas, transformem-se uma “vibrante indústria transnacional que faz parte da economia de guerra e, ao mesmo tempo, dos processos de pacificação e reconstrução”.
Por atuarem em contextos delicados, a atuação de tais companhias tem sido alvo de discussão no mundo todo. Há diversos indícios de que suas atividades desrespeitam os direitos humanos tanto das populações que vivem nos locais onde se instalam, como de seus próprios funcionários, submetidos a cargas horárias estafantes.
Os textos que seguem, retirados do portal LaMarea, contribuem para o entendimento do contexto em que opera essa indústria e dos debates que rondam seu campo de ação.

O dilema da privatização da guerra se transforma em debate internacional

Seguindo a crescente tendência de privatizar atividades e serviços públicos (saúde, educação, transporte etc), a última década assistiu à privatização de núcleos de soberania estatal tão sensíveis como os serviços militares e de segurança. De fato, a guerra também está sendo privatizada, e bem adaptada ao século XXI, por meio de empresas multinacionais.
Desde o fim da Guerra Fria e particularmente durante os conflitos do Afeganistão (2001) e Iraque (2003), empresas militares e de segurança privadas (EMP) apoiam exércitos em diversas tarefas e cada vez mais. Quer dizer, na guerra se contrata mais e para mais funções: desde o transporte, apoio logístico ou treinamento de tropas, até a proteção de pessoas e instalações militares, manutenção da tecnologia armamentista ou inteligência. Porém, a atuação de empresas como Blackwater (atual Academi), G4SAegis ou KBR não está restrita a situações de conflito armado, nem são os exércitos ocidentais os únicos a utilizar seus serviços. Empresas privadas, agências diplomáticas, ONGs e organizações internacionais – como as Nações Unidas e a União Europeia – contratam EMPs para garantir sua proteção e segurança em diversos cenários de instabilidade. O resultado: uma vibrante indústria transnacional que faz parte da economia de guerra e, ao mesmo tempo, dos processos de pacificação e reconstrução.
Sombras e luzes dos exércitos privados
A privatização militar e de segurança tem suas ambivalências e apresenta seus dilemas. Seus defensores destacam, sobretudo, os benefícios estratégicos e operacionais que podem trazer. Por exemplo, o rápido deslocamento e mobilização de unidades permite com que se adaptem às necessidades da missão militar (seja a guerra, o restabelecimento ou o mantimento da paz); constituem um bloco de reforço não só militar, mas também de segurança quando as forças públicas não têm capacidade. Inclusive, os prestadores de serviços militares possuem habilidades e capacitações de que os agentes governamentais carecem, como, por exemplo, o idioma ou o conhecimento íntimo do terreno, no caso de contratados locais.
Sem dúvida, o atrativo político e econômico é um dos pontos positivos da indústria. A utilização das EMPs permite sustentar missões militares pouco populares entre os cidadãos, sem comprometer o envio de tropas (que requer autorização parlamentar), e apenas com debate público (baixas de contratados não contam como baixas militares). Além disso, mesmo que o valor desorbitado de alguns contratos e salários não seja muito claro, algumas vozes também apelam às possíveis vantagens econômicas, já que empresas militares provadas podem ser contratadas e permanecer em territórios temporariamente, e diferente de militares tradicionais, não precisam de pensões pós serviço, programas de tratamento médico etc. Num conjunto, essas vantagens têm guiado uma política de contratação em massa por parte de alguns países, como os EUA e o Reino Unido – que inclusive desenvolveram uma certa dependência em relação a essas empresas. A prevalência das EMPs é tal que, ainda que seus serviços não impliquem o desaparecimentos dos exércitos, essas potências ocidentais reconhecem que não podem sustentar operações militares sem sua assistência.
Os aspectos negativos também são importantes. Graves violações de direitos humanos por parte dessas EMPs já foram documentadas, sobretudo, relacionadas ao uso desproporcional de força contra civis. Há registro de abuso de direitos trabalhistas dos próprios empregados, e, inclusive, de processos obscuros de contratação e escândalos de corrupção e fraude, entre outras coisas. Aqui vem o dilema, privatizar ou não privatizar? Essa é a questão.

Um debate público necessário
As políticas internas dos governos variam quanto à legalidade da privatização militar, muito embora os pontos positivos pareçam ter convencido a certos estados e organizações, que vêm aceitando cada vez mais o uso desse tipo de serviço.
Os pontos negativos, por sua vez, mobilizaram ONGs, acadêmicos e grupos de peritos das Nações Unidas para que, no mínimo, sejam desenvolvidas iniciativas de controle e regulamento. Algumas delas incluem a participação da indústria, como os códigos de conduta que criam parâmetros voluntários de comportamento para as companhias. Outras evidenciam as obrigações internacionais dos Estados em relação ao assunto. Existem, ainda, propostas mais vinculantes, como o projeto de tratado da ONU sobre mercenários, que tenta limitar as funções que o governo pode delegar às EMPs, e estabelece medidas garantindo o respeito aos direitos humanos e o fim da impunidade.
Até o momento, a reação internacional diante do fenômeno não tem assumido o enfoque abolicionista que dominou a regulamentação dos mercenários (a lei internacional proíbe recrutar, utilizar, financiar e treinar mercenários, porém as EMPs escapam à sua definição legal), e o debate está centrado em como regulamentar e controlar as atividades dessas empresas.
Não sobra dúvida de que este enfoque regulador tem seu pragmatismo: diante da dificuldade de frear o uso de EMPs, tentando, ao mesmo tempo, não valorizar o fenômeno, busca-se ordenar sua conduta e garantir os direitos humanos mediante à regulação e, quando possível, à limitação de suas atividades. A segurança é um bem público, e para assegurar uma conduta apropriada das EMPs e seus empregados, é fundamental que os governos desenvolvam leis de regulamentação e mecanismos democráticos de controle.
Contudo, regulações não acabam com o debate sobre a privatização. As políticas de privatização respondem a uma visão do mundo neoliberal e são, em grande parte, ideológicas. Por isso, alguns Estados, não todos, vêm como um benefício a privatização militar. Dada a natureza transnacional do fenômeno, há margem para o debate.
Se as atividades das EMPs forem adequadamente reguladas e se a responsabilidade legal das empresas e seus empregados melhorar, seria legítimo e moralmente aceitável privatizar a segurança e os órgãos militares? Os esforços regulatórios solucionariam a perda do controle democrático, a desigualdade no acesso à segurança, ou a instabilidade nacional e internacional que já gerou e pode gerar a atuação destas companhias?
Aqui está o dilema, privatizar ou não privatizar, esta também é a questão. Um debate público, pendente e necessário.

A privatização da guerra: um assunto de direitos humanos

O processo de privatização da guerra e da reconstrução da paz segue razões estratégicas, políticas, econômicas e ideológicas. As empresas militares e de segurança privadas (EMPs) são elogiadas por sua eficiência e capacitação. Tanto os lobbys da indústria como os de alguns Estados contratantes destacam o papel determinante que os contratados privados têm exercido como força de apoio, para levar estabilidade e segurança a cenários pós-conflito.  Da perspectiva do respeito aos direitos humanos, contudo, a realidade que vemos é muito diferente e manifesta os riscos da atuação das EMPs, num contexto ainda pouco regulamentado: suas atividades podem ter consequências nefastas para os direitos humanos, agravar as circunstâncias que iniciaram o conflito e ameaçar a estabilidade do país, não necessariamente melhorando a segurança humana, e sim contribuindo para a distribuição injusta da segurança pública.
A Força Tarefa da ONU sobre mercenários e EMPs, sob o mandato do Conselho de Direitos Humanos, documentou, em suas missões aos países onde essas empresas operam, numerosas denúncias de violações de direitos humanos cometidas por empregados dessas companhias. Entre essas estão execuções sumárias, atos de tortura e tratamentos degradantes, casos de detenção arbitrária, de tráfico de pessoas e doenças causadas pelas atividades das ditas empresas. Um exemplo conhecido é o da prisão de Abu Ghraib, no Iraque, em 2003: funcionários de EMPs cometiam abusos enquanto trabalhavam como seguranças e tradutores.
Organizações nacionais de direitos humanos e ONGs também denunciaram conduta irresponsável, tráfico de armas, abuso de poder e falta de profissionalismo por parte de algumas EMPs. De fato, no Iraque, a companhia americana Blackwater foi alvo de amplas críticas depois do incidente na praça Nissour, em Bagdade (2007), quando morreram 17 civis e mais de 20 pessoas – inclusive crianças ficaram feridas. Pouco depois, um relatório produzido pelo Congresso dos EUA concluiu que a Blackwater teve participação em pelo menos 195 casos de uso de força excessivo entre 2005 e 2007 – uma média de 1.4 tiroteios por semana.
Acusações de abusos cometidos pelas empresas contra seus próprios empregados também surgem com frequência. A força tarefa da ONU, em seu informe, faz referência a irregularidades contratuais, maus tratos e más condições laborais, tais como extensas cargas horárias, falta de pagamento, e possivelmente, casos de tráfico de pessoas. Flagrantes de negligencia já ocorreram, como episódio envolvendo Daniel Fitzsimons (2009).
O impacto das EMPs sobre os direitos humanos é observável também nos efeitos indiretos que suas atividades geram no setor de segurança, na segurança humana e na estabilidade do país. Mesmo que as EMPs sejam apresentadas como forças que apoiam a estabilização, seus serviços nem sempre têm efeitos positivos no ambiente geral de segurança do país. No Afeganistão, por exemplo, as empresas militares privadas vêm estabelecendo vínculos irregulares com paramilitares e milícias locais, conferindo-lhes legitimidade e criando uma estrutura de segurança fora do controle governamental que neutraliza a eficácia dos programas de desarmamento e desmobilização de combatentes.
O crescimento do setor militar privado está associado à proteção de pessoas estrangeiras e empresários afegãos. Isso determina a formação de enclaves “seguros” em um ambiente maior extremamente inseguro, transformando a segurança em um privilegio condicionado pela riqueza.
Os contratados não são militares
Em teatros de guerra, os contratados não são militares, são considerados civis. Porém, esse status de civil é problemático. Os funcionários das EMPs não são qualquer classe de pessoa civil, são civis autorizados a usar força, e realizam funções até agora reservadas aos exércitos e corpos de segurança do Estado. Por isso, da perspectiva dos direitos humanos, os militares privados deveriam ser diferenciados de outras classes de civis, como os jornalistas, os que prestam serviços humanitários, ou empregados administrativos e religiosos dos exércitos. Sobretudo, devem ter uma supervisão especial adaptada às funções que realizam.
A falta de regulamento e controle sobre o uso destas companhias não faz nada a não ser agravar os riscos que suas atividades naturalmente apresentam. A carência de supervisão direta sobre as EMPs impede que as alegações de abusos possam ser registradas e devidamente investigadas. A ausência de um eficiente aparato legal, ou melhor, de sua devida aplicação, tem resultado na ausência da prestação de contas por parte das empresas e seus contratados acusados de graves violações. Quem sofre as consequências são as vítimas, às quais sobram o desamparo e falta de reparação.
Conforme a Declaração Internacional dos Direitos Humanos, os Estados têm a obrigação de garantir e proteger o direito de todas pessoas sob sua jurisdição, e não estão isentos dessa obrigação quando delegam suas funções públicas para empresas privadas.
Os Estados devem exercer a devida diligência e adotar as medidas apropriadas para prevenir, dissuadir, investigar e reparar as violações de direitos humanos causadas pelos atos dessas entidades privadas e seus funcionários. Devido à natureza das atividades das EMPs e os efeitos negativos que podem ter sobre os direitos humanos, a regulamentação da indústria militar e de segurança privada é uma das obrigações estatais.
Mesmo que os Estados estejam tentados por uma solução rápida, estratégica, política e economicamente conveniente, é hora de começarem a legislar o setor e regulamentar a indústria militar e de segurança privada, a partir de uma perspectiva que priorize os direitos humanos.