"Posso não concordar com o que você diz, porém, farei de tudo para que seja ouvido" Voltaire

O presidente de Cuba, Raúl Castro, fez um pedido para que se estabeleçam "relações civilizadas" com os Estados Unidos, dizendo que os dois países devem respeitar suas diferenças.
O líder cubano, irmão de Fidel Castro, afirmou ainda que os EUA deveriam abandonar suas exigências de mudança do regime, para que os dois países possam continuar trabalhando para melhorar suas relações.

Os EUA romperam relações com Cuba em 1961, depois da revolução na ilha, e mantém um embargo econômico contra o país.
Seus comentários ocorrem depois de um aperto de mão público com o presidente Barack Obama no funeral de Nelson Mandela, na África do Sul, no início de dezembro.

'Respeito mútuo'

Em um discurso público incomum, o presidente Castro revelou que funcionários cubanos e americanos se reuniram diversas vezes durante o último ano, para discutir assuntos práticos como imigração e um reestabelecimento de um serviço de correio entre os países.
Isso demonstra que as relações podem ser civilizadas, disse Castro.
No entanto, ele advertiu que "se realmente queremos avançar nas relações bilaterais, teremos que aprender a respeitar mutuamente nossas diferenças e nos acostumarmos a conviver pacificamente com elas". Caso contrário, disse ele, os cubanos estariam dispostos a outros 55 anos como os anteriores.
"Não pedimos que os Estados Unidos mudem seu sistema político e social, nem aceitamos negociar o nosso", afirmou Castro aos deputados durante a última sessão do ano da Assembleia Nacional.
As relações entre os dois vizinhos melhoraram um pouco recentemente, mas ainda há obstáculos para uma reconciliação, disse a correspondente da BBC em Havana, Sarah Rainsford.

Reformas

Desde que Raúl Castro recebeu o poder de seu irmão Fidel, em 2006, ele deu início a um programa de reformas econômicas que ajudaram a relaxar as tensões com os EUA.

No entanto, os críticos dizem que as mudanças estão sendo muito lentas.
Castro e Obama | Foto: AP
Aperto de mão entre líderes gerou expectativa
de melhores relações entre Cuba e EUA
"Os que nos pressionam para andarmos mais rápidos querem nos levar ao fracasso", argumentou Castro em seu discurso.
As reformas, segundo ele, pretendem "atualizar" o modelo socialista, mas não devem incluir pacotes de ajuste econômico, ao modelo europeu.
"Nunca admitiremos em Cuba terapias de choque revolucionárias como as que estamos vendo na rica e dita culta Europa, que mergulhariam o país em um clima de divisão e desestabilidade que sirva de pretexto para aventuras intervencionistas contra a nação."
Entre as mudanças mais recentes está o anúncio do fim das restrições à compra e venda de carros particulares novos e usados.
Agora, qualquer indivíduo com dinheiro suficiente poderá comprar um veículo de uma concessionária estatal. Até então, só pessoas que tinham autorizações especiais podiam fazê-lo.

O líder cubano não mencionou o aperto de mão com Barack Obama, mas a cena gerou expectativas sobre um avanço nas relações bilaterais.

Fonte: BBC Brasil

Tem certeza que o passado esta morto? Estamos vivendo uma onda neonazista no Ocidente, diz socióloga

 Carla Cristina Garcia – PUC-SP
Nesta semana, o jogador da seleção da Croácia Josip Simunic foi banido pela Fifa e está fora da Copa do Mundo de 2014. O zagueiro, após a vitória sobre a Irlanda (em novembro), pegou o microfone e entoou cânticos nazistas com o apoio da torcida. A Fifa considerou inadequada a postura do atleta.
Porém, o caso do desportista não é um fato isolado, principalmente diante dos últimos ocorridos na Europa. No começo deste ano, Paris foi palco de uma manifestação contrária ao casamento igualitário, que reuniu cerca de 1,5 milhão de pessoas, porém, o presidente Hollande peitou os grupos conservadores e fez campanha pessoal pela aprovação do projeto, fato que ocorreu em maio.
Na Grécia, foram eleitos seis parlamentares do partido Aurora Dourada, assumidamente neonazista. Recentemente, o líder do partido, Nikos Mihaloliakos, foi preso acusado de fazer parte de um grupo clandestino neonazista envolvido em assassinatos e lavagem de dinheiro. Outros três parlamentares do Aurora Dourada foram presos sob a mesma acusação.
Mas não é apenas na Europa que os ideais eugenistas (base da ideologia nazista) ressurgem, nos EUA e Brasil também. Lá como cá, esses grupos estão organizados nos partidos políticos, nas assembleias e nos meios de comunicação. Os discursos são os mesmos: anti-políticas raciais, contrários a qualquer avanço na legislação no que diz respeito às LGBT e aborto e, principalmente, sobre políticas de drogas.
No Brasil, por exemplo, mais de uma vez, o deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) declarou que a África é um “continente amaldiçoado” e que o líder Nelson Mandela implantou a “cultura de morte na África do Sul”. E os companheiros de bancada do pastor propagam a ideia de que homossexuais são doentes passíveis de cura. São pensamentos que lembram os eugenistas no século XIX. Com os ativistas do Tea Party norte-americano (ala radical do Partido Republicano) se dá o mesmo.
Com este cenário que se espalha por vários países, será possível afirmar que o Ocidente vive uma nova onda eugenista/neonazista? Para a socióloga e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Carla Cristina Garcia, não há dúvidas de que vivemos uma nova onda das teses que fundaram o nazismo. Garcia, que também coordena o núcleo de pesquisa sobre feminismo e sexualidades – Inanna – diz que é correto falar em nova onda, pois, as ideias que têm permeado o ideário conservador do Ocidente, nunca deixaram de existir, mas, neste momento, ganham nova força com a ascensão dos movimentos mais progressistas.
Revista Fórum – Nesta semana, um jogador da Croácia foi expulso da seleção por ter cantado cânticos nazistas ao fim de uma partida em novembro com o apoio da torcida; neste ano, membros do partido grego neonazista Aurora Dourada foram presos depois que investigação descobriu que eles faziam parte de uma quadrilha nazista; no Brasil setores sociais e políticos têm propagado o discurso de ódio contra LGBT, mulheres, aborto, droga… Pode-se dizer que o Ocidente vive uma nova onda eugenista?
Carla Cristina Garcia - Sem dúvida alguma vivemos uma nova onda do pensamento eugenista e é bom frisar o termo onda, pois a ideia, ou melhor, o ideal eugênico nunca desapareceu da sociedade ocidental.
Talvez seja importante lembrar que todas as teorias racistas modernas são fruto do pensamento eugenista, mais precisamente norte-americano, que desenvolveu um tipo específico de eugenia, conhecida como “eugenia negativa”: eliminação das futuras gerações de “geneticamente incapazes” – enfermos, racialmente indesejados e economicamente empobrecidos –, por meio de proibição marital, esterilização compulsória, eutanásia passiva e, em última análise, extermínio. O aumento no número de imigrantes no final do século XIX levou o grupo dominante no país, os protestantes cujos ancestrais eram oriundos do norte da Europa, a buscar motivos para exclusão. Encontraram terreno fértil na pseudociência da eugenia.
Os eugenistas usaram os últimos conhecimentos científicos para “provar” que a hereditariedade tinha papel-chave em gerar patologias sociais e doenças. Os imigrantes tornaram-se alvos fáceis de defensores dessa nova “ciência”, que empregaram os achados do movimento eugênico para construir a imagem dos imigrantes como pessoas deformadas, doentes e depravadas, encontrando eco em seus contemporâneos nas ciências sociais e na biologia, entre os quais a eugenia propagou-se como algo considerado perfeitamente lógico.
Fórum – Esse retorno do discurso eugenista em vários países pode ser uma volta do discurso (se é que um dia ele já se foi) do Ocidente enquanto sujeito branco e familista?
Carla Cristina Garcia - Eu não chamaria de retorno do discurso eugenista, pois acredito que este nunca foi deixado de lado, todas as manifestações xenofóbicas por todo o mundo ocidental, o ódio ao estrangeiro propagado em muitos países europeus, além de exibir toda a questão do pensamento colonial, também demonstra claramente que xenofobia e eugenismo são frutos do mesmo tipo de pensamento eurocêntrico, branco e patriarcal.
Fórum – Acompanhamos nos últimos meses o acirramento entre a bancada fundamentalista e os setores progressistas pró-LGBT, que terminou ontem com a vitória dos religiosos ao enterrarem o PLC 122 sob argumentos bíblicos. Por que é tão difícil se fazer aplicar o Estado Laico?
Carla Cristina Garcia - O problema aqui é muito mais complexo do que parece. Primeiro: há dois direitos individuais em conflito: o que assegura a liberdade religiosa e o que assegura a liberdade de consciência. As pessoas têm o direito de serem religiosas ou ateias, sem darem qualquer explicação. Acreditam ou deixam de acreditar como bem quiserem, e qualquer constrangimento a esses direitos é inconstitucional.
Segundo, o Estado é laico. Ser laico não significa ser ateu. Ser laico significa não tomar partido. Não cabe ao Estado defender essa ou aquela denominação ou agremiação religiosa, e tampouco cabe ao Estado pregar o ateísmo. Cabe ao Estado defender o direito das pessoas, individualmente, escolherem (ou não terem de escolher) se e no que acreditarem. Se alguém resolver acreditar no Coelhinho da Páscoa, cabe ao Estado laico defender tal direito.
Sobre aqueles que estão exercendo um cargo público são agentes do Estado. Logo, ele ou ela o representa perante a sociedade e, por isso, sua liberdade religiosa deve ser ainda mais resguardada enquanto estiver no exercício de sua função. Não há dúvida que ela pode rezar em casa ou no templo, independente de qual seja sua profissão. Mas, em sua vida política, ela é o Estado. E o Estado é laico. Como representante do Estado, ela não deve preferir (ou proferir) uma religião.
Fórum – Além dos LGBTs, temos acompanhado o fortalecimento dos discursos contra indígenas, negros, usuários de drogas, mulheres e outros difamados. Na sua opinião, estes sujeitos, historicamente subalternizados, deixarão um dia a condição de sujeitos silenciados e difamados?
Carla Cristina Garcia - Há uma nova movimentação no mundo todo contra os abusos do capitalismo e do pensamento colonial. Acredito que a luta por direitos ainda está longe de acabar. Estas novas configurações dos movimentos sociais podem levar a um recrudescimento das forças conservadoras ou podem levar a outro tipo de organização social mais efetiva.

Multilinguismo no Alto Rio Negro, no Amazonas: uma herança ameaçada

A modernidade da vida urbana se agrega à tradição da cultura indígena em várias casas da cidade de Manaus, no Amazonas. São famílias inteiras que vêm para a capital amazonense em busca de um futuro promissor para seus descendentes. Deulinda Freitas e Judite Martins são mulheres da etnia Desana, que fazem parte do Grupo de Mulheres Indígenas e, como tantas outras, têm em sua história o desejo de uma vida digna e o medo de que sua cultura se perca pelo esquecimento com o passar do tempo.

história se repete entre as etnias do Alto Rio Negro no Amazonas. Na região, é normal uma única pessoa falar no mínimo três línguas. As crianças aprendem a falar a língua do pai, da mãe e mais uma por convivência com outras crianças. Segundo a pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Ana Carla Bruno, doutora em linguística e Antropologia, praticamente todo indivíduo conhece fluentemente três, quatro ou mais línguas. “Apenas os Makú e alguns não-indígenas não são multilíngues”, afirma.
Na definição do dicionário Aurélio, língua é “o conjunto das palavras e expressões, faladas ou escrita, por um povo, por uma nação”. Em sua pesquisa, Ana Carla discorre sobre a situação de multilinguismo encontrado no noroeste amazônico, analisando a interação entre língua e cultura de toda sociedade. Ela conta que a pesquisadora russa Alexandra Aikenvald observou que, quando encontravam os Tukanos, os indígenas Tarianos não falavam tariano e sim tukano. Foi quando ela começou a pensar sobre o assunto: “o será que está acontecendo com os tarianos? Será que estão perdendo a língua?”.
Dentro do sistema multilíngue existe a ideia que todas as línguas são iguais, nenhuma é mais importante que a outra. Mas, no prática, não é isso que ocorre. “O grupo Tukano tem maior número de falantes. É o processo que esta acontecendo no Alto Rio Negro. Muitas das etnias terminam cedendo à língua tukano, por isso Aikenvald atenta para um processo de tukanização”, afirma Ana Carla.
Língua, cultura e sociedade
A artesã do Grupo de Mulheres Indígenas, Deulinda Freitas Prado, 62, da etnia Desana, fala o português e tukano que é sua língua materna. Ela saiu da aldeia que morava com seus pais aos 22 anos para trabalhar com artesanato junto às freiras. “Depois comecei a trabalhar em casa de famílias, como auxiliar do lar, e quando eu tinha 35 anos comecei a trabalhar no movimento indígena em outro lugar fora da cidade”, conta Freitas.

Aos 40 anos se casou com um indígena da etnia Tariano, com quem teve um filho, Roberto. Hoje com 20 anos, nascido em Manaus, fala apenas português, e segundo sua mãe, não se interessou em aprender a língua dos pais. “Ele até entende algumas coisas que falamos em tukano, mas falar mesmo ele não fala nada. Eu queria muito que ele aprendesse a falar e escrever em tukano, mas como ele se criou aqui em Manaus e já está adulto, acho que não tem mais jeito”, relata.

São vários motivos que levam os indígenas a parar de usar a seu próprio idioma. “As pessoas deixam de usar sua língua, às vezes, por vergonha, por não escutar os pais dentro de casa. E temos que ver que no mercado linguístico. Algumas línguas são mais valorizadas que outra, e não podemos esquecer que dentro desse sistema, também tem o espanhol. Por conta da fronteira, muitos indígenas falam espanhol, além do português”, explica Bruno.
No cotidiano, explica a pesquisadora, em que os sujeitos sociais buscam cada vez mais se qualificarem para o mercado de trabalho, muitos indígenas pensam dessa forma: “Para que eu vou aprender tantas línguas indígenas, se o mais importante é o português?”. Exemplo disso é a aplicação de um vestibular. “Apesar da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) motivarem estudantes indígenas no estudo de suas culturas e línguas, as trajetórias dos indivíduos e de suas famílias muitas vezes suscitam exatamente o oposto”, relata a pesquisadora.
Uma grande questão observada por pesquisadores que trabalham no Alto Rio Negro é se o sistema multilíngue está se mantendo com estas condições adversas. “Mesmo na cidade de São Gabriel da Cachoeira, interior do Amazonas, os grupos ainda tentam se casar com alguém que tenha uma língua diferente da sua. Não é apenas nas aldeias que o sistemas se mantém, mas percebe-se que o sistema tem se quebrado, enfraquecido com o passar do tempo, e isso é preocupante”, comenta Bruno.
A pesquisadora relata que em 2000 começou uma grande discussão para a oficialização de línguas indígenas em São Gabriel da Cachoeira (AM). “Os indígenas pensavam: porque aqui que têm mais de 20 línguas indígenas e apenas o português é oficial. Quando vamos aos hospitais, cartórios e lojas não somos atendidos nas nossas línguas?”. Dessa forma a movimentação entre próprios indígenas, juntamente com alguns estudiosos, foi grande para cooficializar algumas línguas.
Daí foi pensado em quais línguas deveriam ser cooficializadas. As discussões levaram que deveriam ser as que tivessem maior número de falantes. Então foi escolhido o “nheengatu”, que é uma língua franca, “tukano”, e “baniwa”, para serem línguas cooficiais naquelas regiões também, conta a antropóloga. “Através de uma discussão na Câmara dos Vereadores e com a Prefeitura, eles conseguiram cooficializar mais três línguas naquela região, além do português”, relata.
O problema é que sendo cooficiais, essas línguas deveriam estar presentes nas informações da cidade, assim como está em português. “Deveriam ter placas com informações nas três línguas, e não é o que acontece. Não é algo fácil. Como é que você traduz o universo jurídico expressões que não existem na língua indígena?”, argumentou a pesquisadora.
A grande questão seria: o que o governo pode fazer para que essas línguas e outras tantas línguas de etnias indígenas do Amazonas sejam preservadas? Nesse sistema de resgate da cultura, a própria população pode fazer sua parte e buscar informações sobre sua cultura local, conhecer, saber e apreciar a história dessas etnias, antes que essas línguas indígenas desapareçam, como várias outras já desapareceram.

José Pacheco: “Brasil despreza seus educadores geniais”

Criador da Escola da Ponte, em périplo pelo país, afirma: “além de Paulo Freire, outros brasileiros poderiam revolucionar ensino; burocracia estatal os sufoca”
Por Simone Harnik
Idealizador da Escola da Ponte, em Portugal, instituição que, em 1976, iniciou um projeto no qual os estudantes aprendem sem salas de aula, divisão de turmas ou disciplinas, o educador português José Pacheco afirma que as escolas tradicionais são um desperdício para os estudantes e os professores.
“O que fiz por mais de 30 anos foi uma escola onde não há aula, onde não há série, horário, diretor. E é a melhor escola nas provas nacionais e nos vestibulares”, diz. “Dar aula não serve para nada. É necessário um outro tipo de trabalho, que requer muito estudo, muito tempo e muita reflexão.”
Aos 58 anos, o professor que classifica autores como Jean Piaget como “fósseis”, fez uma peregrinação pelo país. No trabalho de prospecção de boas iniciativas em colégios brasileiros, Pacheco só não conheceu instituições do Acre e do Amapá e diz ter somado cerca de 300 voos no último ano.
Com a experiência das viagens, escreveu dois livros de crônicas: o “Pequeno Dicionário de Absurdos em Educação”, da editora Artmed, e o “Pequeno Dicionário das Utopias da Educação”, da editora Wak. Aponta ainda que a educação brasileira não precisa de mais recursos para melhorar: “O Brasil tem tudo o que precisa, tem todos os recursos e os desperdiça”. Veja a entrevista:
Em suas andanças pelo país, qual o absurdo que mais chamou sua atenção?
O maior absurdo é que a educação do Brasil não precisa de recursos para melhorar. O Brasil tem tudo o que precisa, tem todos os recursos e os desperdiça.
Desperdiça como?
Pelo tipo de organização. A começar pelo próprio Ministério da Educação. Eu brinco, por vezes, dizendo que o melhor que se poderia fazer pela educação no Brasil era extinguir o Ministério da Educação. Era a primeira grande política educativa.
Qual o problema do ministério?
Toda a burocracia do Ministério da Educação que se estende até a base, porque a burocracia também existe nas escolas, à imagem e semelhança do ministério. No próprio ministério, o contraste entre a utopia e o absurdo também existe. Conheço gente da máxima competência, gente honesta. O problema é que, com gente tão boa, as coisas não funcionam porque o modo burocrático vertical não funciona. É um desperdício tremendo.
Como resolver?
Teria de haver uma diferente concepção de gestão pública, uma diferente concepção de educação e uma revisão de tudo o que é o trabalho.
O que teria de mudar na concepção de educação?
O essencial seria que o Brasil compreendesse que não precisa ir ao estrangeiro procurar as suas soluções. Esse é outro absurdo. Quais são hoje os autores que influenciam as escolas? Vygotsky [Lev S. Vygotsky (1896-1934)], Piaget [Jean Piaget (1896-1980)]? Não vejo um brasileiro. Mas podem dizer: “E Paulo Freire?”. Não vejo Paulo Freire em nenhuma sala de aula. Fala-se, mas não se faz.
Identifiquei, nos últimos anos, autores brasileiros da maior importância que o Brasil desconhece. Esse é outro absurdo. Quem é que ouviu falar de Eurípedes Barsanulfo (1880-1918)? De Tomás Novelino (1901-2000)? De Agostinho da Silva (1906-1994)? Ninguém fala deles. Como um país como este, que tem os maiores educadores que eu já conheci, não quer saber deles nem os conhece?
Há 102 anos, em 1907, o Brasil teve aquilo que eu considero o projeto educacional mais avançado do século 20. Se eu perguntar a cem educadores brasileiros, 99 não conhecem. Era em Sacramento, Minas Gerais, mas agora já não existe. O autor foi Eurípedes Barsanulfo, que morreu em 1918 com a gripe espanhola. Este foi, para mim, o projeto mais arrojado do século 20, no mundo.
O que tinha de tão arrojado?
Primeiro, na época, era proibida a educação de moços e moças juntos. Só durante o governo Getúlio Vargas é que se pôde juntar os dois gêneros nos colégios. Ele [Barsanulfo] fez isso. Ele tinha pesquisa na natureza, tinha astronomia no currículo oficial. Não tinha série nem turma nem aula nem prova. E os alunos desse liceu foram a elite de seu tempo. Tomás Novelino foi um deles e Roberto Crema, que hoje está aí com a educação holística global, foi aluno de Novelino.
Por que o senhor fala desses autores?
Digo isso para que o brasileiro tenha amor próprio, compreenda aquilo que tem para que não importe do estrangeiro aquilo que não precisa. É um absurdo ter tudo aqui dentro e ir pegar lá fora.
Qual foi a maior utopia que o senhor viu?
O Brasil é um país de utopias, como a de Antônio Conselheiro e a de Zumbi dos Palmares. Fui para a história, para não falar em educação. Na educação, temos Agostinho da Silva, que é um utópico coerente, cuja utopia é perfeitamente viável no Brasil. Ou seja, é possível ter uma educação que seja de todos e para todos. O Brasil, dentro de uns 30 ou 40 anos, será um país bem importante pela educação. São os absurdos que têm de desaparecer, para dar lugar à concretização das utopias. Acredito nisso, por isso estou aqui.
 Os professores são resistentes às mudanças? 
Os professores são um problema e são a solução. Eu prefiro pensar naqueles professores que são a solução, conheço muitos que estão afirmando práticas diferentes.
Práticas diferentes como a da Escola da Ponte?
Não são “como”, mas inspiradas, com certeza. São práticas que fazem com que a escola seja para todos e proporcione sucesso para todos.
Dentro da escola tradicional, onde ocorre o desperdício de recursos?
Se considerarmos o dinheiro que o Estado gasta por aluno, daria para ter uma escola de elite. Onde o dinheiro se desperdiça? Por que em uma escola qualquer, que tem turmas de 40 alunos, a relação entre o número de professores e de alunos é de um para nove? Por que os laudos e os atestados médicos são tantos? Porque a situação que se criou nas escolas é a do descaso. Esse é um absurdo.
Onde mais ocorre o desperdício nas escolas?
O desperdício de tempo também é enorme em uma aula. Pelo tipo de trabalho que se faz, quando se dá aula, uma parte dos alunos não tem condições de perceber o que está acontecendo, porque não têm os chamados pré-requisitos, e se desliga. Há um outro conjunto de crianças que sabem mais do que o professor está explicando – e também se desliga. Há os que acompanham, mas nem todos entendem o que o professor fala. Em uma aula de 50 minutos, o professor desperdiça cerca de 20 horas. Se multiplicarmos o número de alunos que não aproveitam a aula pelo tempo, vai dar isso.
O desperdício maior tem a ver com o funcionamento das escolas. Os professores são pessoas sábias, honestas, inteligentes e que podem fazer de outro modo: não dando aula, porque dar aula não serve para nada. É necessário um outro tipo de trabalho, que requer muito estudo, muito tempo e muita reflexão.
As famílias não estão acostumadas com escolas que não têm classe, professor ou disciplinas. Querem o conteúdo para o vestibular. Como se rompe com esse tipo de mentalidade?
Pode-se romper mostrando que é possível. Eu falo do que faço, e não de teorias. O que fiz por mais de 30 anos foi uma escola onde não há aula, onde não há série, horário, diretor. E é a melhor escola nas provas nacionais e nos vestibulares. Justamente por não ter aulas e nada disso.
Por que uma escola que não tem provas forma alunos capazes de ter boas notas em provas e concursos?
Exatamente por ser uma escola, enquanto as que dão aulas não são. As pessoas têm de perceber que não é impossível. E mais, que é mais fácil. Posso afirmar, porque já fiz as duas coisas: estive em escolas tradicionais, com aulas, provas, com tudo igualzinho a qualquer escola; e estive também 32 anos em outra escola que não tem nada disso. É mais fácil, os resultados são melhores.
Na concepção do senhor, o que é uma boa escola?
É a aquela que dá a todos condições de acesso, e a cada um, condições de sucesso. Sucesso não é só chegar ao conhecimento, é a felicidade. É uma escola onde não haja nenhuma criança que não aprenda. E isso é possível, porque eu sei que é. Na prática.
O professor que está em uma escola tradicional tem espaço para fazer um trabalho diferente? O senhor vê espaço para isso?
Não só vejo, como participo disso. No Brasil, participei de vários projetos onde os professores conseguiram escapar à lógica da reprodução do sistema que lhe é imposto. Só que isso requer várias condições: primeiro, não pode ser feito em termos individuais; segundo, a pessoa tem de respeitar que os outros também têm razão. Se, dentro da escola, os processos começam a mudar e os resultados aparecem, os outros professores se aproximam. Não tem de haver divisionismo.
O senhor acha que a mudança na estrutura da escola poderia partir do poder público ou depende da base?
Acredito que possa partir do poder público, mas duvido que aconteça. As secretarias têm projetos importantes, mas são de quatro anos. Uma mudança em educação precisa de dezenas de anos. Precisa de continuidade. E isso é difícil de assegurar em uma gestão. Precisa partir de cada unidade escolar e do poder público juntos.
Fonte:  Uol Educação