Multilinguismo no Alto Rio Negro, no Amazonas: uma herança ameaçada

A modernidade da vida urbana se agrega à tradição da cultura indígena em várias casas da cidade de Manaus, no Amazonas. São famílias inteiras que vêm para a capital amazonense em busca de um futuro promissor para seus descendentes. Deulinda Freitas e Judite Martins são mulheres da etnia Desana, que fazem parte do Grupo de Mulheres Indígenas e, como tantas outras, têm em sua história o desejo de uma vida digna e o medo de que sua cultura se perca pelo esquecimento com o passar do tempo.

história se repete entre as etnias do Alto Rio Negro no Amazonas. Na região, é normal uma única pessoa falar no mínimo três línguas. As crianças aprendem a falar a língua do pai, da mãe e mais uma por convivência com outras crianças. Segundo a pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Ana Carla Bruno, doutora em linguística e Antropologia, praticamente todo indivíduo conhece fluentemente três, quatro ou mais línguas. “Apenas os Makú e alguns não-indígenas não são multilíngues”, afirma.
Na definição do dicionário Aurélio, língua é “o conjunto das palavras e expressões, faladas ou escrita, por um povo, por uma nação”. Em sua pesquisa, Ana Carla discorre sobre a situação de multilinguismo encontrado no noroeste amazônico, analisando a interação entre língua e cultura de toda sociedade. Ela conta que a pesquisadora russa Alexandra Aikenvald observou que, quando encontravam os Tukanos, os indígenas Tarianos não falavam tariano e sim tukano. Foi quando ela começou a pensar sobre o assunto: “o será que está acontecendo com os tarianos? Será que estão perdendo a língua?”.
Dentro do sistema multilíngue existe a ideia que todas as línguas são iguais, nenhuma é mais importante que a outra. Mas, no prática, não é isso que ocorre. “O grupo Tukano tem maior número de falantes. É o processo que esta acontecendo no Alto Rio Negro. Muitas das etnias terminam cedendo à língua tukano, por isso Aikenvald atenta para um processo de tukanização”, afirma Ana Carla.
Língua, cultura e sociedade
A artesã do Grupo de Mulheres Indígenas, Deulinda Freitas Prado, 62, da etnia Desana, fala o português e tukano que é sua língua materna. Ela saiu da aldeia que morava com seus pais aos 22 anos para trabalhar com artesanato junto às freiras. “Depois comecei a trabalhar em casa de famílias, como auxiliar do lar, e quando eu tinha 35 anos comecei a trabalhar no movimento indígena em outro lugar fora da cidade”, conta Freitas.

Aos 40 anos se casou com um indígena da etnia Tariano, com quem teve um filho, Roberto. Hoje com 20 anos, nascido em Manaus, fala apenas português, e segundo sua mãe, não se interessou em aprender a língua dos pais. “Ele até entende algumas coisas que falamos em tukano, mas falar mesmo ele não fala nada. Eu queria muito que ele aprendesse a falar e escrever em tukano, mas como ele se criou aqui em Manaus e já está adulto, acho que não tem mais jeito”, relata.

São vários motivos que levam os indígenas a parar de usar a seu próprio idioma. “As pessoas deixam de usar sua língua, às vezes, por vergonha, por não escutar os pais dentro de casa. E temos que ver que no mercado linguístico. Algumas línguas são mais valorizadas que outra, e não podemos esquecer que dentro desse sistema, também tem o espanhol. Por conta da fronteira, muitos indígenas falam espanhol, além do português”, explica Bruno.
No cotidiano, explica a pesquisadora, em que os sujeitos sociais buscam cada vez mais se qualificarem para o mercado de trabalho, muitos indígenas pensam dessa forma: “Para que eu vou aprender tantas línguas indígenas, se o mais importante é o português?”. Exemplo disso é a aplicação de um vestibular. “Apesar da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) motivarem estudantes indígenas no estudo de suas culturas e línguas, as trajetórias dos indivíduos e de suas famílias muitas vezes suscitam exatamente o oposto”, relata a pesquisadora.
Uma grande questão observada por pesquisadores que trabalham no Alto Rio Negro é se o sistema multilíngue está se mantendo com estas condições adversas. “Mesmo na cidade de São Gabriel da Cachoeira, interior do Amazonas, os grupos ainda tentam se casar com alguém que tenha uma língua diferente da sua. Não é apenas nas aldeias que o sistemas se mantém, mas percebe-se que o sistema tem se quebrado, enfraquecido com o passar do tempo, e isso é preocupante”, comenta Bruno.
A pesquisadora relata que em 2000 começou uma grande discussão para a oficialização de línguas indígenas em São Gabriel da Cachoeira (AM). “Os indígenas pensavam: porque aqui que têm mais de 20 línguas indígenas e apenas o português é oficial. Quando vamos aos hospitais, cartórios e lojas não somos atendidos nas nossas línguas?”. Dessa forma a movimentação entre próprios indígenas, juntamente com alguns estudiosos, foi grande para cooficializar algumas línguas.
Daí foi pensado em quais línguas deveriam ser cooficializadas. As discussões levaram que deveriam ser as que tivessem maior número de falantes. Então foi escolhido o “nheengatu”, que é uma língua franca, “tukano”, e “baniwa”, para serem línguas cooficiais naquelas regiões também, conta a antropóloga. “Através de uma discussão na Câmara dos Vereadores e com a Prefeitura, eles conseguiram cooficializar mais três línguas naquela região, além do português”, relata.
O problema é que sendo cooficiais, essas línguas deveriam estar presentes nas informações da cidade, assim como está em português. “Deveriam ter placas com informações nas três línguas, e não é o que acontece. Não é algo fácil. Como é que você traduz o universo jurídico expressões que não existem na língua indígena?”, argumentou a pesquisadora.
A grande questão seria: o que o governo pode fazer para que essas línguas e outras tantas línguas de etnias indígenas do Amazonas sejam preservadas? Nesse sistema de resgate da cultura, a própria população pode fazer sua parte e buscar informações sobre sua cultura local, conhecer, saber e apreciar a história dessas etnias, antes que essas línguas indígenas desapareçam, como várias outras já desapareceram.

Nenhum comentário:

Postar um comentário